Na verdade, o maior de todos.
Resenha do livro de Ronaldo Vainfas, por Emiliano José.
O livro é "Antônio Vieira: Jesuíta do Rei" (Companhia das Letras, 352 págs., R$ 44,00).
Vainfas é professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
“Vieira foi grande defensor da escravidão
africana no Brasil até o fim da vida. O maior de todos”.
Para ele, os "pretos" deviam agradecer a Deus por terem sido retirados
das brenhas do mundo gentio em que viviam em terras etíopes “para serem
instruídos na fé”, vivendo como cristãos, seguros, por isso, da salvação
eterna.
“Somente
assim [na condição de escravos] cumprir-se-ia seu glorioso destino, enquanto devotos de Nossa
Senhora do Rosário, que fez deles seus filhos prediletos no mundo”.
Antônio Vieira e o doce inferno dos negros
Emiliano José *.
Nasceu em Lisboa em 1608. Morreu em Salvador, em 1697. Com seus
sermões, tornou-se uma referência, tanto pela maestria e beleza com que
esgrimia ao valer-se da língua portuguesa quanto pelas ideias que
defendia, enfrentando preconceitos de então, justificando outros.
Combateu a escravidão indígena no Brasil, enfrentou a feroz Inquisição
portuguesa por quem foi implacavelmente perseguido, defendeu os judeus e
o que considerava dinamismo do capital que eles podiam aportar em
Portugal.
Gostava da Corte, envolveu-se na política e na diplomacia, foi
intransigente defensor da escravidão dos negros, contra qualquer
negociação com o Quilombo dos Palmares, propôs que a Coroa portuguesa
entregasse Pernambuco aos holandeses e chegou a enveredar pelos caminhos
da profecia, um dos motivos pelos quais foi perseguido pela Inquisição.
Essas impressões foram recolhidas do livro
Antônio Vieira: Jesuíta do Rei (Companhia
das Letras, 352 págs., R$ 44,00), de autoria do professor titular do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense Ronaldo
Vainfas.
A indicação de leitura veio de meu amigo, professor Venício
Lima, apaixonado pelo estudo em torno de Vieira. Li de uma sentada, como
se diz aqui na Bahia. É, além de tudo, muito bem escrito, escapando do
peso de quaisquer hermetismos acadêmicos. Quando gosto da leitura, e se
tenho espaço, manifesto-me, sem que, obviamente, tenha a mínima
pretensão de produzir uma resenha. Agradeço a indicação que Venício me
fez, entre outras tantas, sempre prazerosamente acolhidas, e que nunca
me frustraram.
Sei perfeitamente que corro o risco do anacronismo – quase inevitável
quando lemos sobre personagens do passado. Somos tomados por conceitos
do presente. E queremos exigir de personagens de outrora uma postura
correspondente ao que contemporaneamente consideramos correto.
Vainfas
foge disso e, por isso, consegue revelar um Vieira multifacetado, que
poderíamos chamar hoje de contraditório. Mas só teríamos o direito de
fazê-lo se desconhecêssemos as circunstâncias históricas de então, o
caldo cultural vigente no século XVII, os valores da própria Igreja
Católica. Vieira, foi, aí sim, um personagem complexo, rico, polêmico, e
isso o livro consegue inegavelmente demonstrar.
A base teológica que justificava a escravidão negra
Do que me ocupo, exclusivamente, para que não nos enganemos quanto à
força cultural e ideológica que os séculos acumularam contra os negros, é
da ideia quanto à escravidão africana, tão solene e fortemente
defendida pela Igreja Católica e pelo Papa, sob a alegação de que o
cativeiro era uma espécie de benção para os pretos – há um capítulo
denominado
Paraíso dos Pretos, tratando exclusivamente dessa
visão, no qual me concentrarei nesse texto.
A escravidão, no raciocínio
do catolicismo de então, tinha o condão de trazer os negros para a luz
do cristianismo, como acentua Vainfas. A Igreja e os Jesuítas, ordem à
qual Vieira pertencia, e na qual permaneceu até morrer, adotaram dois
pesos e duas medidas na questão escravista.
Como diz o autor, no caso dos índios, escravidão e catequese se
opunham. No caso dos africanos, complementavam-se. Embora fosse uma
contradição insolúvel do ponto de vista moral, contornava-se o problema
com uma sólida base teológica. A escravidão era má, porém justa e
necessária para a ordem do mundo. Para os índios, buscar a salvação e
não permitir a escravidão deles. Para os negros, cativeiro. A Igreja vai
buscar referências em São Tomás de Aquino, desde, portanto, o século
XIII. No decorrer do século XV, construiu-se a ideia de que os africanos
em particular eram os mais vocacionados para a escravidão por
descenderem de Cam, o filho maldito de Noé, cuja linhagem fora condenada
ao cativeiro. Cam teria sido o povoador do continente africano. Os
índios, que nada tinham a ver com Cam, deviam ser preservados do
cativeiro, como lembra o autor. “Contradição moral e ideológica.
Coerência teológica.”
Vieira conhecia bem a sustentação teórico-teológica escravocrata. Na
Bahia, naquela primeira metade do século XVII, vivia-se a fase da
implantação da escravidão africana e surgiam, portanto, os primeiros
quilombos de escravos fugidos, reprimidos logo nos primeiros anos
daquele século. A elite baiana estava incomodada com a resistência
negra. Era necessário acalmar os negros, acostumá-los à escravidão.
Vieira estava na Bahia, depois de ter vivido alguns anos em Pernambuco.
Não se sabe quais as razões que o levaram a pregar sobre a escravidão, o
que ele faz em 1633 – é o segundo sermão público de Vieira, então com
apenas 25 anos. E o faz num engenho do Recôncavo Baiano para uma
“confraria” de escravos negros, sem que se saiba exatamente a natureza
dessa confraria. O sermão integra a coleção de 30 sermões de Vieira
dedicados à Virgem, no ciclo conhecido como Maria Rosa Mística.
O autor defende a possibilidade de que o pedido para que Vieira
fizesse o sermão tenha sido dos senhores de escravos com o apoio do
governo colonial, empenhados em acalmar os ânimos negros. É provável,
ainda, segundo o mesmo autor, que outros religiosos também tenham feito
pregação com o mesmo teor.
O sermão de Vieira, então, seria a parte
visível de um movimento mais amplo de doutrinação de escravos no mundo
rural baiano, encabeçado, na política, pelo governador Diogo Luís de
Oliveira, pelo bispo D. Pedro da Silva e Sampaio e pelo provincial da
Companhia de Jesus, Domingos Coelho. Falo de política, mas é evidente
que havia distinção entre as elites que o autor chama de governativas e
as espirituais. Nesse momento, constituíam um único corpo, unitário, a
favor da escravidão negra.
O sermão de Vieira cai como uma luva naquele
cenário, e não é ocasional, como já dissemos, nem nasce apenas de um
rompante espiritual do sacerdote.
A tentativa de convencer pela fé
Trata-se de um sermão dirigido exclusivamente aos escravos, chamados
por ele de etíopes – termo que designava genericamente os africanos – ou
de pretos, ou, ainda, de negros da Guiné. O sermão, destaca o autor, se
apóia no mote dos filhos de Maria. A Paixão de Cristo transformara
Maria em mãe de toda a humanidade – assim Vieira deu início ao sermão.
E, anotem, de todos os devotos de Maria no mundo, os pretos eram os mais
gloriosos.
Os pretos deviam agradecer a Deus por terem sido retirados
das brenhas do mundo gentio em que viviam em terras etíopes “para serem
instruídos na fé”, vivendo como cristãos, seguros, por isso, da salvação
eterna. A glória dos pretos residia na condição de escravos. “Somente
assim cumprir-se-ia seu glorioso destino, enquanto devotos de Nossa
Senhora do Rosário, que fez deles seus filhos prediletos no mundo”,
explica o autor.
A arte argumentativa de Vieira, as armas de seu discurso, são
impressionantes, admiráveis, para além da análise que possamos fazer
hoje, à luz das conquistas políticas e culturais da humanidade. Ele, no
sermão, pergunta: – Por que razão Maria concedera seu maior favor aos
pretos? E responde, com toda segurança: Porque eles, os pretos, mais do
que quaisquer outros, eram a imitação perfeita da paixão de Cristo. Com o
cativeiro, eram a prova viva dos mistérios dolorosos, prelúdio dos
mistérios gozosos da salvação, a serem desfrutados na vida eterna.
Aqui na terra, haveriam de enfrentar os mistérios dolorosos para
continuarem a ser os preferidos de Maria. O sermão escravista de Vieira,
que o autor considera uma peça literária de rara beleza, mescla o
temporal e o espiritual, as dores de Cristo na cruz e a dureza do
cotidiano escravo nos engenhos. Imitação de Cristo – era essa a gloriosa
vida dos negros escravos na construção de Vieira, um argumento de
grande força persuasiva numa época em que a preocupação dominante era a
salvação da própria alma.
Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado – dirá o jesuíta.
“A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem
descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo
despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em
tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os
açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isso se compõe a vossa
imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento
de martírio”.
Eu fico aqui imaginando os negros, escravos, reunidos numa manhã ou
numa tarde, quem sabe de domingo, tentando entender aquela engenhosa
dialética, aquela impressionante transformação de dor em glória, olhando
para aquele pregador tão cheio de artes e manhas, e de convicções,
aquele sacerdote que se punha tão próximo de Cristo e que os aproximava
tanto daquele que morrera na Cruz, e com o qual eles se encontrariam
mais tarde, depois de mortos, no Paraíso. Não seria o caso mesmo de
aceitar o sofrimento? A resposta nossa hoje é não. E então?
Escravidão no Brasil, quadro de Jean-Baptiste Debret (1768-1848).
Podemos afirmar que foram obrigados, coagidos a aceitar o escravismo
colonial pela violência e pela repressão. Mas as elites não dispensavam o
discurso, o convencimento, a tentativa de acalmar ímpetos de
insubmissão, que ocorrerão, mais tarde, para além dos muitos quilombos,
na Revolta dos Malês ou na Revolução dos Alfaiates. Ali, naquele
momento, Vieira se dirigia a africanos já cristianizados, e pode ser que
assimilassem alguma coisa do discurso, sem que possamos saber se os
convencia.
Cristo, seguirá Vieira, na sua Paixão, sofreu as dores do inferno. E
ele segue seu raciocínio: “E que coisa há na confusão deste mundo mais
semelhante ao inferno, que qualquer destes vossos Engenhos, e tanto mais
quanto de maior fábrica. Por isso foi tão bem recebida aquele breve e
discreta definição de quem chamou a um Engenho de Açúcar doce inferno.”
Vieira seguirá adiante com uma descrição aterrorizante sobre o doce
inferno.
Falará de labaredas saindo aos borbotões, os negros banhados em
suor diante da fornalha, as caldeiras ou lagos ferventes, e gemendo
tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso – uma
impressionante semelhança com o inferno construído pelos católicos ou,
se quisermos, uma encarnação precisa de todas as dores que se anunciavam
para a danação eterna.
Mas, como a escravidão era o paraíso dos pretos, então, todo esse
inferno se converterá em paraíso, como diz Vieira em seu sermão, um
documento essencial para que se entenda o espírito dominante de então e
para que se esclareça o papel do jesuíta como um escravista, como um
sólido ideólogo da escravidão, como um religioso que assumiu
compromissos com aquela ordem hedionda.
Vai criticar os senhores de
escravos em sermões futuros, por desleixos na condução espiritual dos
escravos e nos excessos de violência que praticavam – como se isso não
fosse, de fato, a regra.
Mas, como diz o autor, corretamente: “uma vez
escravista, sempre escravista:
“Vieira foi grande defensor da escravidão
africana no Brasil até o fim da vida. O maior de todos”.
* Fonte:
Carta Capital.
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