24 maio 2021

Como uma viagem de ácido pela Califórnia tornou Michel Foucault um neoliberal



O tratamento dado ao neoliberalismo por Foucault (além de sua reportagem estranhamente entusiástica sobre a Revolução Iraniana) "revela a pobreza em alguns temas-chave" de seu legado.
Ele falhou em prever como uma filosofia da "autonomia" pôde criar uma cultura do privilégio disfarçada de meritocracia. 

O livro que conta essa história é "The Last Man Takes LSD: Foucault and the End of Revolution
("O Último Homem Toma LSD: Foucault e o Fim da Revolução"), de Mitchell Dean e Daniel Zamora
Editora Verso, 256 páginas, US$ 27

Jonathan Russell Clark para o Los Angeles Times.
24 de maio de 2021.

Em 1978 e 1979, o filósofo francês Michel Foucault deu uma série de palestras sobre o neoliberalismo, o conjunto de doutrinas econômicas voltadas para o livre mercado, pró-empresarial, redução do tamanho do Estado e autonomia individual. Foucault não estava interessado nos detalhes do governo real. "Não estudei e não quero estudar", anunciou na primeira palestra, "o desenvolvimento de uma prática governamental real". Em vez disso, ele estava interessado na "arte do governo".

Um livro baseado nessas palestras, "The Birth of Biopolitics", não seria publicado em inglês até 2008, bem no meio de uma crise financeira histórica claramente causada pelo neoliberalismo. Foi, para seu legado, um momento infeliz. O flerte de Foucault com a ideologia dominante desafiou sua reputação acadêmica incólume, e vários artigos tentaram defendê-lo contra sua própria transformação tardia. Mas as consequências foram claras, independentemente do pequeno papel que desempenhou: não muito depois de suas palestras, Thatcher e Reagan deram a largada no neoliberalismo pelo mundo, e estamos revirando escombros até hoje.

Tudo remonta, estranhamente, a uma visita que o pensador francês fez à esquerdista Califórnia - e a uma viagem que fez assim que chegou lá. 

O novo livro de Mitchell Dean e Daniel Zamora, "The Last Man Takes LSD", enfoca a década final de Foucault, de 1975, quando ele tomou o alucinógeno na Califórnia pela primeira vez, até sua morte, em 1984, por complicações da AIDS. 

Durante este período, Foucault mudou de lado na política, da esquerda, desde os anos 60, para uma posição mais centrista, uma tendência dificilmente rara para sua geração durante a Guerra Fria. Como Dean e Zamora colocaram, "Foucault e muitos outros intelectuais pós-68 participaram do processo de pensar sobre uma esquerda que não era socialista; uma esquerda que eliminaria o legado do socialismo pós-guerra."

Nessa visão, um governo com muito poder sobre seus cidadãos invariavelmente levaria ao totalitarismo. O socialismo era visto como "cripto-totalitário". Para Foucault, tais regimes não apenas controlavam sua população, eles os definiam. 

Assim como ele defendeu, perante Roland Barthes, que a interpretação dos textos é a "morte do autor", Foucault queria destituir o Estado de seu poder de determinar o significado de seus cidadãos. Era necessária uma nova concepção radical da individualidade, que substituísse as ideias anteriores de resistência política. Inventar a si próprio foi, para Foucault, a nova forma de revolução.

Ironicamente, foi a experiência de Foucault com LSD em Zabriskie Point no Vale da Morte, um local bem conhecido por suas associações com a  contracultura (principalmente, pelo filme de Michelangelo Antonioni de 1970, "Zabriskie Point") que o encaminhou para a direita. 

A Califórnia nos anos 1960 e 1970 foi um viveiro de ativismo esquerdista - dos protestos de Berkeley aos Merry Pranksters e os Panteras Negras. Foucault, por outro lado, descobriu um tipo diferente de radicalismo. Sua viagem de LSD reforçou sua oposição à "hermenêutica de si", ou seja, interpretar a si como se houvesse alguma verdade fundamental e fixa de sua identidade.

Em vez disso, Foucault acreditou na noção de “prova” - provação -, uma técnica que criaria a verdade interior, em vez de desnudá-la. A identidade de uma pessoa, segundo Foucault, deve ser construída por meio de julgamentos pessoais não contaminados por interferências externas, incluindo - e  principalmente - a de um Estado. 

Foucault mergulhou fundo no coração do individualismo americano e do anti-establishment, mas suas realizações subsequentes mostraram o quão tênue é a linha entre a autossuficiência e o egoísmo.

O neoliberalismo rapidamente se transformou de um conjunto de práticas econômicas que promoveriam a liberdade individual no que o escritor George Monbiot descreveu como “um tipo de extorção self-service”, enriquecendo os ricos e institucionalizando a desigualdade sistêmica. 

Já na década de 70, escrevem Dean e Zamora, o neoliberalismo "foi revelado não apenas como totalmente compatível com regimes autoritários e ditatoriais, em vários países, mas, em muitos casos, como um de seus requisitos". 

O que começou como uma reação ao socialismo “cripto-totalitário” se transformou exatamente no tipo de ideologia restritiva que afirmava combater. Friedrich Hayek, o autor do discurso proto-neoliberal "The Road to Serfdom" ("O Caminho da Servidão"), afirmou certa vez em uma entrevista que preferia um "ditador liberal" a uma "democracia sem liberalismo".

Para os autores, o tratamento dado ao neoliberalismo por Foucault (além de sua reportagem estranhamente entusiástica sobre a Revolução Iraniana) “revela a pobreza em alguns temas-chave” de seu legado. 

Em primeiro lugar, "a abordagem de Foucault parece ter comprometido sua capacidade de abordar a questão da desigualdade." Em segundo lugar, ele falhou em prever como uma filosofia da “autonomia” pôde criar uma cultura do privilégio disfarçada de meritocracia. 

A competição econômica sugere que vencedores e perdedores merecem estar nos lugares onde estão. Na retórica de Newt Gingrich e Bill Clinton nos anos 90, os cidadãos de baixa renda precisavam apenas assumir "responsabilidade pessoal", enquanto o governo se afastava de suas obrigações cívicas.

“The Last Man Takes LSD” não é tão narrativo quanto seu título e premissa podem sugerir - isso não é “Medo e aversão na pós-modernidade”*. Mas Dean, um professor de política, e Zamora, co-autor de “Foucault e o Neoliberalismo”, fazem um excelente trabalho contextualizando as pesquisas e ideias de Foucault em seus anos finais. 

Eles traçam metodicamente as nuances do clima político espinhoso da Era, criando um retrato da promoção simpático de Foucault em uma virada filosófica prejudicial a um pensador que explorou com sucesso o poder e a exploração - uma virada filosófica autodestrutiva. 

Os autores não são tímidos, entretanto, em condenar suas deficiências intelectuais durante esse período. As práticas que ele exaltou em suas palestras, concluem Dean e Zamora, “contribuíram para aumentar a desigualdade, as políticas ditas de austeridade e de controle da dívida pública, mas que aceleraram a corrosão dos serviços públicos, a destruição de empregos públicos e minaram a confiança no Estado, a tal ponto que reduziu a capacidade das democracias reais existentes de resolver problemas da economia, da saúde, segurança e meio ambiente que os confrontam. ”

Mesmo que a viagem de LSD de Foucault não tenha sido a única causa de suas tendências neoliberalistas, ela serve como um simbolismo útil. Os psicodélicos podem promover revelações que expandem a mente, mas implementar novas políticas governamentais requer muito mais do que considerações abstratas. 

Foucault era conhecido por seu envolvimento com o ativismo político (descrito por Colin Gordon como um “homem de ação em um mundo de pensamento”), mas sua miopia tardia reside em sua falta de vontade de explorar suas consequências práticas. Uma ideia que nutre a mente ainda pode destruir o corpo ou corromper a alma. O problema com a ideia de neoliberalismo é que ela soava muito bem em teoria.



* A expressão "fear and loathing" ("medo e aversão") se refere a um estilo editorial de livros muito vendidos que começam justamente com essas palavras e a elas se acrescenta o tema que será tratado no livro.

A foto que estampa esta postagem retrata Michel Foucault e o pianista Michael Stoneman justamente no Vale da Morte, Califórnia, em junho de 1975. Tirada pelo fotógrafo David Wade.

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02 maio 2021

"O mundo é o que se vê de onde se está"

O geógrafo Milton Santos dizia que "descolonizar é olhar o mundo com os próprios olhos." 

Por isso, para ele, "o mundo é o que se vê de onde se está". 





Ele foi um dos primeiros a entender a globalização como um fenômeno histórico que tinha suas origens desde as grandes navegações que levaram, em 1492, à chegada definitiva dos europeus ao território que se tornaria conhecido como América. 

"O olhar sobre a primeira globalização vem das viagens de descobrimento e conquista". 









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