20 fevereiro 2013

“Ponha-se na rua”

O "cartão de visita" da família Real portuguesa em  1808 e o bota-fora dos morros, mais de 200 anos depois.

Artigo de Mauro de Bias, "Saia do morro", na Revista de História da Biblioteca Nacional.

“Ponha-se na rua.” A frase ficou famosa no Rio de Janeiro de 1808. Sua origem remonta às iniciais “P.R.” pintadas nas portas das casas nos dias seguintes à chegada da Família Real à cidade. A sigla significava “Príncipe Regente”, mas a criatividade carioca fez questão de transformá-la. Na época, membros da Corte escolhiam as melhores residências para morar, já que chegaram ao Brasil sem local para abrigar-se. Os (des)agraciados com tal pintura tinham 72 horas para abandonar suas moradias com mobília e escravos dentro, para que os nobres pudessem usufruir dos bens. Não havia pagamento de aluguel ou indenização.

Passaram-se mais de 200 anos desde as desapropriações. Mas a História, essa senhora irônica, faz questão de nos lembrar desse episódio, hoje, em 2013. Isso porque no alto do Morro da Providência - a primeira favela do Rio de Janeiro - a Secretaria municipal de Habitação (SMH) marcou casas que serão demolidas para realização de obras do programa Morar Carioca, que se propõem a melhorar a urbe. As portas de várias residências estão pintadas com “SMH” e um número de quatro algarismos. Mesmo que esteja prometida a criação na área de uma praça que, associada a mirantes no entorno, deverá ter um grande potencial turístico, o carioca, novamente, não perdeu tempo em criar sua própria frase para a sigla: “Saia do morro hoje”.

O momento atual vivido pela comunidade da Providência remete ainda a outro, ocorrido há pouco mais de cem anos, mas em escala mais significativa. O prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913), que governou o Rio de 1902 a 1906, promoveu em seu mandato a maior reforma urbana já vista na cidade, demolindo cerca de 1.600 residências e desabrigando aproximadamente 20 mil pessoas na região central para abrir avenidas e fazer obras sanitárias.

Desta vez, ao menos, a prefeitura investiu em não afastar a população do morro. No entorno da favela estão em construção três condomínios do ‘Minha Casa, Minha Vida’ que servirão para reassentar as 671 famílias removidas (um total de 4889 pessoas). A SMH informou ainda que, deste número, 196 famílias já aceitaram a realocação.

O líder comunitário Maurício Hora, de 44 anos, que coordena o Centro Cultural Casa Amarela e promove oficinas de arte para os adolescentes da favela, porém, queria que ninguém precisasse sair do morro. Morador da Providência desde que nasceu, o fotógrafo se diz preocupado com a vontade do governo de reassentar moradores em outros locais. “Por que não tem um projeto habitacional aqui? Não existe nenhuma obra de habitação aqui, só remoção”, diz.


 O maior problema, para Hora, é a falta de diálogo da prefeitura com os moradores. “Fazer obras para construir um teleférico ou abrir ruas é bom. Ruas são mais interessantes que um teleférico, aliás. Mas tem que chamar a comunidade para participar. Eles planejaram e trouxeram pronto achando que aquela era a melhor forma de fazer, e não é assim”, reclama o morador.

A SMH rechaçou as reclamações de que não há diálogo com os moradores. “Desde o início das obras do Morar Carioca no Morro da Providência, foram realizadas quatro assembleias públicas com a presença do secretário municipal de Habitação (à época, Jorge Bittar). Além desses encontros, ocorreram cerca de 20 reuniões da equipe social do projeto com grupos menores para esclarecer as dúvidas dos moradores sobre a obra”, informou a Secretaria em nota.

O secretário municipal de Habitação, Pierre Batista, acrescenta que a abertura da região do alto do morro servirá para melhorar mobilidade e serviços na região, inclusive levando coleta de lixo, que é uma reivindicação dos moradores. “Em consequência disso, vai surgir turismo, que vai gerar movimento econômico na comunidade”, diz Batista, que faz questão de reiterar, no entanto, que a prioridade é a melhoria urbana, não o turismo.

Mas Maurício Hora e moradores reclamam que uma face ruim das reformas é perder o que o morro tem de mais essencial: a comunidade. “O grande problema não é perder as casas, é perder as pessoas. Eu quero que gente que mora em barraco melhore de vida, tenha casa melhor, mas não precisa sair do morro. Meu maior receio é perder a identidade cultural da favela”, afirma o líder comunitário.
A preocupação de Hora tem fundamento, de acordo com a historiadora Eneida Queiroz, que pesquisa exatamente a reforma realizada por Pereira Passos. “Até em áreas impróprias de favelas os preços [dos imóveis] têm aumentado. Nas pacificadas (caso da Providência), o valor das casas aumentou absurdamente. Então vai acontecer uma evasão. Quem for dono da própria casa poderá vender e sair ganhando, mas os que moram de aluguel vão sair. A única coisa certa é que o mercado imobiliário é sempre o que sai ganhando”, alfineta a pesquisadora.
Roberto Carlos da Silva, 41 anos, é nascido e criado na Providência e tem um bar no alto do morro, em um ponto nobre. Seu botequim fica a poucos metros de um mirante, de uma praça e da Capela do Cruzeiro (ora também chamada de Capela das Almas), a construção histórica que a prefeitura pretende valorizar abrindo espaços no entorno. É nessa vizinhança que as casas estão marcadas para demolição. Em frente ao bar, será feito ainda um anfiteatro. Carlinhos, como é conhecido na comunidade, tem medo de perder seus fregueses.

“Aqui tem uma visão panorâmica, dá para ver tudo. Maracanã, Engenhão, Baía de Guanabara, Pão de Açúcar. Mas aí veio o Favela-Bairro e tirou várias casas de fregueses meus daqui. Se tirarem as de quem ficou, vou vender para quem? Vou depender de gringo subir aqui?”, reclama.

O comerciante acredita que, se o morador quiser impedir as reformas, será preciso união. “Tirar a gente é a vontade deles, mas não vamos dar mole, não. A população tem força, mas não se junta. Separados somos fracos, mas se a gente se juntar, não tem Eike Batista, não tem presidente Dilma, não tem presidente Lula, ninguém pode contra a gente”, avisa.

Perto do bar de Carlinhos, bem em frente à Capela do Cruzeiro, mora a diarista Marta Alexandre dos Santos, de 62 anos, outra insatisfeita com as reformas. Vinda da Paraíba, ela vive desde os 30 na Providência. A relação que ela tem com seus vizinhos é, literalmente, familiar. Sobrinhos, cunhados e primos moram no entorno.

“A prefeitura chegou tirando fotos, medindo, marcando e não falou mais nada. Só disseram que a gente ia sair, porque queriam fazer um ponto turístico aqui. Eu achei até que o teleférico fosse chegar aqui, mas não chega”, comenta dona Marta. Ela afirma ainda que considera errada a atitude da prefeitura. “Eu e meu falecido marido construímos nossa casa com tanto sacrifício. Até fome nós passamos, e agora querem tirar a gente daqui”, lamenta a moradora.

Ela diz que ouve bons comentários a respeito do condomínio construído em Triagem, bairro próximo ao Centro do Rio de Janeiro. Uma de suas vizinhas, deficiente física, aceitou a remoção e solicitou a opção da aquisição assistida (quando a SMH ajuda o morador a encontrar uma residência adequada). “Ela diz que o apartamento é pequeno, mas que é bom”, relata.

Amiga de dona Marta, a doméstica Ginilda Nogueira de Oliveira, 46 anos, nascida e criada na favela, não teve a casa marcada, mas teme ficar longe da vizinha. “Martinha não pode ir embora, não. Eu posso até sair e vir visitar todo dia, mas Martinha não pode sair do morro”, diz. Ela conclui dizendo que turistas e moradores não são incompatíveis. “É injusto tirar a gente daqui. Turista vem pela comunidade, não por outra coisa”, afirma.

Maurício Hora reclama de um dos condomínios construídos perto do morro - o único que está com obras avançadas -, pela dificuldade de acesso - os prédios ficam muito longe da Central - e por causa de enchentes que costumam acontecer no entorno.

Outra pessoa muito insatisfeita com a incerteza do futuro é Francisca da Silva Almeida, de 76 anos, moradora da favela há 41. Com sua porta marcada, ela se preocupa por não poder fazer obras. “A casa de todo mundo fica aqui se acabando. A gente não pode fazer nenhuma melhoria, porque tem medo de perder tudo depois”, diz.

O secretário Pierre Batista se defende, afirmando, inclusive, que nem todas as remoções são por causa das obras. Pouco mais de 50% dos moradores, segundo Batista, serão reassentados por estarem alocados em áreas de risco, como é o caso dos que habitam na região da Pedra Lisa e dos que estão em imóveis condenados pela Defesa Civil.
“Nós vamos tentar todas as formas de diálogo. O morador vai poder escolher se quer ir para um condomínio, receber indenização ou comprar outro imóvel com assistência da prefeitura, mas as obras vão ser feitas. Se o morador não quiser sair, vamos buscar as vias judiciais”, argumenta o secretário.

Enquanto a situação não se resolve, liminares vêm e vão, embargando e liberando as obras do programa da prefeitura. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro está engajada em impedir a retirada de moradores. Na ação mais recente, de meados de dezembro, a construção foi novamente liberada. O termo “remoção”, aliás, é evitado a todo custo pela Secretaria municipal de Habitação, que prefere chamar de “reassentamento”.

Antes do Natal, o prefeito Eduardo Paes inaugurou o teleférico, mas o transporte ficará em testes até abril deste ano. Só então será liberado para uso público. Os condomínios (com 855 moradias), teleférico e reassentamentos fazem parte do Programa Morar Carioca, que tem verba de R$ 163 milhões. Deste montante, R$ 75 milhões foram o custo do transporte por cabos.

Ainda segundo a SMH, desde abril de 2011, existe um plantão social que funciona de segunda a sexta-feira, das 9 às 17h, na Rua da Gamboa s/nº, para atender e esclarecer as dúvidas de toda a comunidade.

As obras também despertam controvérsias nos bancos universitários. Marcelo Burgos, professor de Sociologia da PUC-Rio, participou das discussões iniciais do Morar Carioca no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e aponta três vertentes que ele considera positivas no programa. “Ele ultrapassou a lógica micro do Favela-Bairro, permitindo a criação de equipamentos mais abrangentes de desenvolvimento urbano”, comenta.
O segundo avanço do projeto, segundo Burgos, é a possibilidade de intervir na moradia das pessoas, para que, além de um exterior digno, as residências tenham também a parte interna mais habitável. “O poder público deve melhorar as ruas, mas por que não melhorar também as habitações? Morar é mais do que a rua, mais do que o saneamento, é a própria casa”, afirma o pesquisador.
No entanto, ele avalia que esse ponto não foi levado adiante no programa. “O documento final do Morar Carioca é muito superficial. É pouco esquematizado. A sensação é de que o governo propositalmente deixou em aberto para que desse uma margem de manobra muito grande de como usar essas intervenções urbanas”, critica o especialista.
Todavia, o avanço mais importante do Morar Carioca, na opinião de Burgos, é exatamente o desadensamento das regiões sem remoções indiscriminadas. “Permite intervenções que podem ser muito boas, como foi feito pelo Programa de Aceleração do Crescimento na Rua 4, na Rocinha, que tinha o maior índice de tuberculose do Brasil. Agora mudou da água para o vinho a qualidade de vida dos moradores”, comenta o sociólogo.
Levar obras urbanas para favelas implica em remoções e demolições, devido à crônica falta de espaço das comunidades. O que acontece hoje no morro da Providência é uma experiência que pode ser repetida em outras comunidades, segundo a SMH. Se o trabalho vai trazer resultados bons ou ruins para os moradores, é preciso esperar para ver.

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