"Um dia encontrei Lula empolgado por um livro de Câmara Cascudo..." Ôpa! Como assim? Mas e a história de que Lula nunca leu um livro? Pois é, não passa de um "cliché". Traduzindo para o bom português: preconceito.
O artigo abaixo, do grande jornalista Bernardo Kucinski, é de 2008, mas extremamente útil para explicar o recente episódio ocorrido na França. Bernardo conta como alguns "clichés", inventados malandramente por políticos de direita, foram chupados sem cerimônia por jornalistas que se prestaram ao trabalho de serem marqueteiros do preconceito.
A linguagem do preconceito no jornalismo brasileiro *
Virou moda dizer que “Lula não entende das coisas”. Ou “confundiu isso com aquilo”. É a linguagem do preconceito, adotada até mesmo por jornalistas ilustres e escritores consagrados.
Bernardo Kucinski
Jornalista e professor da Universidade de São Paulo,
foi colaborador da Carta Maior e autor, entre outros,
de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996)
e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).
Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania
,empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares
dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada
ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João
Ubaldo Ribeiro, “De caju em caju”, em que ele goza o presidente por
falar do caju, “sem conhecer bem o caju.” Dias antes, Lula havia feito
um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura
valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.
“È uma pena que
o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta
presença sociocultural do caju naquela remota região do país...”,
escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha
vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguinda esparramou-se citações
sobre o caju, para mostrar sua própria erudição.
Estou falando
de João Ubaldo porque além de escritor notável, ele já foi um grande
jornalista. Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que
Lula “confunde “ parlamentarismo com presidencialismo. .”Seria bom” ,
disse Mino, “ que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente
que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia
do governo por meio de seu líder...” Essa do Mino me fez lembrar outra
ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo.
Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos
principais de ação política numa democracia. Pelo mesmo motivo Lula é a
favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao
partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de
seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de
assistir do começo ao fim.Desses seminários resultou o livro de 18
ensaios, “ Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória
Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.
Se pessoas
com a formação de um Mino Carta ou JoãoUbaldo sucumbiram á linguagem do
preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos
prestígio que também dizem o tempo todo que “Lula não sabe nada disso,
nada daquilo“. Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de
“clichê.” É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele
sintetiza idéias com a quais o leitor já está familiarizado, de tanto
que foi repetido. O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o
que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por
isso, o clichê do preconceito “Lula não entende” realimenta o próprio
preconceito.
Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco
ignorante mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso,
pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não
que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de
linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante. “Por que
Lula não se informa antes de falar?, escreveu Ricardo Noblat, quando
Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará “parecia
coisa de ficção” . Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda
faltyava à política exerna brasileira achar “ o ponto G”, William Waack
escreveu : “Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o
ponto G”. .
Outra expressão preconceituosa que pegou é “ Lula
confunde”. A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para
fazer seus próprios jogos de palavras. “Lula confunde agitação com
trabalho”, escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o confunde para
desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não
concordam.. “O presidente confunde choque de gestão com aumento de
contratações”,diz José Pastore . Confunde coisa alguma. Os neo liberais
querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer
contratar mais médicos, professores, biológos para o Ibama. É uma
divergência programática. Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula
confundiu a Vale com uma estatal. “ Trata-a como se fosse a Petrobrás,
empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas
em,digamos, ajudar o Brasil.” Esse caso é curioso porque no parágrafo
seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas,
ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país
pela, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula
também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás
tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem
pensar primeiro na remuneração dos acionistas.
A linguagem do
preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas
dimensões entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou
compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação
formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos
conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição. Mas na
linguagem do preconceito, “ Lula já não consegue mais encadear frases
com alguma consequencia lógica”, como escreveu o Paulo Ghiraldelli ,
apresentado como filósofo na página de comentários importantes do
Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em
economia e também professor de filosofia: “Lula não se conforma com o
fato de , mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua
volta.”
Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas
vem de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só
se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de
políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas. : “O
presidente Lula não sabe o que é pacto federativo, disse Serra, no ano
passado. ”. E continuam a falar.: “ O presidente Lula não sabe
distinguir a ordem das prioridades””, escreveu Gilberto de Mello. ” O
presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão”,
escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.
A tese de que
Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primero
por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido pos
jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que “só mesmo
Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e
parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria
é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato.” ...”
O
pre-conceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em
geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O
preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe,
de que todo operario é ignorante, e a super-valorização do saber
erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber
popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança.
Também não aceitam a possibilidades das pessoas transitarem por formas
diferentes de saber.
A isso tudo se soma o outro preconceito, o
de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do
Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia
Lula, mas ele é descrito com frequencia por jornalistas como uma pessoa
indolente.
Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o
objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma
explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas, não
consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus
minisros esteja trabalhando, já que ele é “ incapaz de entender” o tal
problema. Ou achem que ao representar o Estado ou o país, esteja apenas
passeando, porque onde já se viu um operario, além do mais ignorante,
representar um país?.
* Publicado originalmente na edição de janeiro de 2008 da Revista do Brasil (http://www.revistadobrasil.net/)
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