Aos manifestantes cabe o papel muito
salutar de virar as ideias de cabeça para baixo
Sejamos realistas, façamos o óbvio
Antonio Lassance
Artigo publicado na Carta Maior e no Blog do Nassif
Em
maio de 1968, os jovens franceses que erguiam barricadas tinham como
uma de suas palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o
impossível”. Em uma das manifestações, a Universidade de Paris, com o
aval do governo francês, indicou o sociólogo Alain Touraine como
negociador. Touraine perguntou: quem é o líder de vocês e o que vocês
querem? O interessante das duas perguntas é a total surpresa e
prostração de muitos governantes, diante do inimaginável, e o nó na
cabeça quando se está diante de pessoas que pedem “o impossível”, ou que
são “contra tudo e contra todos”.
Ainda
mais incrível é como a tarefa de reduzir o preço das passagens se
tornou algo considerado “impossível”. Na verdade, em várias das cidades
brasileiras, a passagem de ônibus baixou. Significa dizer que, para
muitas cidades, a ação do Governo Federal de zerar alguns dos impostos
que incidem sobre o transporte coletivo surtiu efeito rápido e imediato,
mas não nas capitais. Em algumas delas, é a justiça quem está obrigando
à redução.
Como
o Governo Federal distribuiu a benesse sem cobrar contrapartidas mais
específicas, que nesse caso poderiam inclusive ajudar em seu esforço
para diminuir a inflação, a oportunidade oferecida pela redução dos
impostos foi engolida pelos governos estaduais ou municipais. Alguns
justificaram como uma opção concreta para recuperar investimentos. Mas
não é com o dinheiro da PIS/Cofins e da Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico que isso deveria ser feito.
Dados
da Secretaria de Transportes de São Paulo revelam que, desde 2004, o
número de ônibus em São Paulo diminuiu, enquanto a quantidade de
passageiros cresceu em quase 80%. O período compreende o último ano da
administração municipal do PT e atravessa toda a era Serra-Kassab na
prefeitura paulistana. Provavelmente, a situação é similar em várias
outras cidades, o que explica claramente como o transporte coletivo foi
meticulosamente preparado na última década para se tornar uma panela de
pressão ainda mais quente. Mas, a essa altura do campeonato, pouco
importa perguntar de quem é a culpa.
A
eclosão dos movimentos de contestação ao preço das passagens do
transporte urbano coincide com o calendário da Copa das Confederações, o
que transformou o evento em um momento emblemático do contraste entre
os investimentos suntuosos em estádios, que ficaram rigorosamente
prontos a tempo, e o atraso nas obras de mobilidade. As cenas do Recife,
com torcedores uruguaios e espanhóis indignados com a situação dos
ônibus e metrô, mostraram que o verdadeiro cartão de visitas do Brasil
aos torcedores estrangeiros já não é mais o estádio e o aeroporto, é o
transporte urbano. As capitais têm um ano para refazerem os planos e
acelerarem a conclusão das principais obras de melhoria urbana. De
preferência, com as máquinas trabalhando na madrugada, como foi feito
para construir estádios.
As
manifestações também praticamente coincidem com o calendário das
conferências estaduais das cidades. Elas estão previstas de ocorrer de
julho a setembro. Prefeituras e governos estaduais, além dos canais de
negociação que acabaram de ser abertos, deveriam canalizar suas energias
para mostrar que as conferências podem ser o palco não apenas da
discussão sobre o preço das passagens, mas sobre o direito à cidade. Em
alguns casos, antecipar sua data de realização talvez fosse uma boa
medida para mostrar a disposição dos governos em discutir os problemas a
fundo.
Ou
esse debate é abraçado pelos dirigentes governamentais como algo a ser
enfrentado e discutido de peito aberto, nas conferências, ou a rua vai
continuar sendo o palco da maior conferência de cada uma dessas cidades.
Todavia, em mais um lance do inacreditável futebol clube, o ministro
das Cidades, até o momento, apenas falou mal e ironizou os
manifestantes, ao invés de aproveitar a onda de protestos como um mote
para discutir as políticas públicas de sua área.
Outra
medida óbvia pode ser extraída do velho clichê de transformar uma crise
em uma oportunidade. Os governos têm pouco mais de um ano e meio para
regulamentar a política nacional de mobilidade urbana. Aprovada em 2012,
a lei é fruto de um debate que ficou interditado no Congresso durante
praticamente uma década. A obrigação de cumprir os prazos da lei agora
se transformou em urgência política.
A
lei da mobilidade é uma oportunidade para os governos reformularem sua
política de financiamento ao transporte e passarem a defender
abertamente a retomada dos subsídios e o resgate das empresas públicas
de transporte. Ficou claro que, se podemos construir estádios, podemos
inverter prioridades para financiar o transporte coletivo. Se podemos
ter estádios de primeiro mundo, podemos ter transporte de primeiro
mundo. A questão, mais uma vez, óbvia, é quem pode e deve pagar essa
conta; quanto vai custar e de onde vão sair os recursos.
Isso
implica não apenas em discutir novas fontes de financiamento como
assumir compromissos no sentido de abrir a caixa preta do transporte
coletivo. Em inúmeros casos, o cartel dos transportes coletivos se
transformou em máfia faz tempo. É bom que prefeitos e governadores se
apressem em abrir seus livros-caixa antes que sejam obrigados a fazê-lo,
ou pelos protestos, ou pelo Judiciário, ou pelos tribunais de contas,
ou, o que é mais provável, por todos eles. Não pode pesar dúvida sobre a
relação de prefeitos e governadores com empresas de transportes, nem
sobre o destino dos recursos utilizados no sistema.
Nessa
hora, por mais paradoxal que possa parecer, o importante é partir do
óbvio para se chegar ao improvável. Cabe aos governos, mais do que aos
manifestantes, organizar o debate. Aos manifestantes cabe o papel muito
salutar de virar as ideias de cabeça para baixo.
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