O QI (quem indica) que explica a atual composição do STF
"Sabe aquele processo que o preocupa?", teria perguntado Fux, sem mencionar expressamente o mensalão. "Eu mato no peito".
As instâncias para chegar ao Supremo
Raymundo Costa e Rosângela Bittar *
A presidente Dilma Rousseff levou seis meses para escolher o nome do sucessor do ministro Carlos Ayres Britto no Supremo Tribunal Federal (STF). Pouco tempo, se comparado ao que o advogado Luís Roberto Barroso esperou por essa indicação. Desde 2003, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez suas primeiras indicações para a Suprema Corte, Barroso frequenta a lista dos nomes analisados no Palácio do Planalto para o cargo. A designação chegou, finalmente, no fim de maio.
"Eu gosto dele porque é um homem de coragem", disse a presidente Dilma Rousseff a um interlocutor do PT, ao comentar a escolha. Provavelmente se referia às causas que Barroso defendeu no Supremo, polêmicas e nem sempre simpáticas a grande parte da opinião pública.
Barroso, por exemplo, patrocinou a causa Cesare Battisti, um italiano saído direto dos anos 1970 que o governo de Silvio Berlusconi queria extraditar e julgar pelo crime de terrorismo. Barroso também advogou no Supremo em defesa da união homoafetiva e das pesquisas com células-tronco embrionárias.
A rigor, o único critério para a indicação de um ministro para o Supremo é o candidato ser um cidadão com "mais de 35 anos e menos de 65 de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada", os termos definidos na Constituição. Na prática, por mais que se diga que a presidente mudou critérios e tornou as escolhas mais técnicas, todas as indicações são políticas. Dilma, de fato, está empenhada em melhorar o nível intelectual dos tribunais.
A diferença em relação ao ex-presidente Lula talvez seja de estilo. Assim que pôs os pés no Palácio do Planalto, Lula não escondeu de ninguém que pretendia nomear para o Supremo Tribunal Federal o jurista Eros Grau, um advogado oriundo do antigo Partidão (Partido Comunista Brasileiro), preso e torturado em 1972, amigo do ex-presidente, integrante do conselho de notáveis do PT - quando o partido ainda era oposição - e membro da comissão especial que o ex-presidente Itamar Franco montou para acompanhar a revisão constitucional de 1993. Era pule de dez para a vaga do ex-ministro Sydney Sanches, a primeira aberta no governo de Lula.
No entanto, o presidente escolheu o ministro Cezar Peluso, um nome de grande prestígio do Tribunal de Justiça de São Paulo que esteve para ser indicado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso com o apoio de José Serra, o adversário de Lula na eleição de 2002. Pesaram, na decisão do presidente, a opinião do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sem dúvida o auxiliar de maior influência nesses assuntos no primeiro governo petista. Outros amigos também advertiram Lula que dois ministros paulistas estavam se aposentando do Supremo e havia a tradição de o TJ de São Paulo sempre ter um nome no STF. Além disso, Peluso era quase uma unanimidade. Até o jurista Saulo Ramos, que fora consultor da União no governo Sarney, apoiava sua indicação.
Além disso, outras duas cadeiras estavam prestes a vagar com a aposentadoria de seus titulares e Lula poderia usar uma delas para acomodar Eros Grau. Antes de nomear o amigo, no entanto, Lula indicou, ainda em 2003, o atual presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa. Já havia no PT a discussão de nomear um negro para o Supremo. Segundo apurou o Valor, o primeiro a falar em Barbosa foi o então coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. É certo que ele encaminhou o nome de Joaquim Barbosa para Sérgio Sérvulo da Cunha, chefe de gabinete do ministro Thomaz Bastos.
Muito se especula sobre as conversas do presidente da República com os candidatos a ministro de um tribunal superior, sobretudo do Supremo. Não há muito mistério. Quando chega ao gabinete presidencial, geralmente o futuro ministro já teve uma conversa inicial com o ministro da Justiça ou outro auxiliar da confiança do presidente. Nessas conversas, o tema em geral são as políticas públicas. Não se pergunta ao candidato como ele vota em determinada situação, mas fica clara a maior ou menor preocupação do governo com determinados assuntos.
Nenhum presidente, seja Lula ou Fernando Henrique, e antes deles, indicaria para ministro do STF alguém inclinado a conceder uma liminar que parasse o país. Agora, por exemplo, Dilma certamente não indicaria ministro um advogado ou juiz que concedesse uma liminar paralisando as obras da hidrelétrica de Belo Monte. Dilma, na realidade, não só manteve o "mantra" das políticas públicas como leva em consideração a bagagem cultural e humanista do candidato que terá de lidar com temas contemporâneos e perspectivas filosóficas, como a pesquisa com células-tronco embrionárias.
Quando indicou Peluso para o STF, Lula quase foi convencido pelo então poderoso chefe da Casa Civil, José Dirceu, a escolher o juiz paulista Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior, presidente da Associação de Juízes para a Democracia e muito ligado ao PT. Lula só viria a indicar um nome indiscutivelmente ligado a José Dirceu, José Antonio Dias Toffoli, em outubro de 2009, já em plena fase de instrução da Ação Penal 470 - a do mensalão -, na qual um dos réus é o ex-ministro da Casa Civil. No julgamento da ação no Supremo, Toffoli só livrou José Dirceu, acusado de ser o arquiteto do mensalão. Em relação aos demais acusados, votou parecido com outros ministros do Supremo.
Havia um outro critério, pelo menos até o governo José Sarney (1985-1990): o procurador-geral da República, o consultor (hoje advogado) da União e o ministro da Justiça eram uma espécie de "candidatos naturais" a uma das 11 cadeiras do Supremo. O ministro Sepúlveda Pertence, que também viria a ser um dos integrantes do grupo de notáveis do PT, foi nomeado por Sarney depois de passar pelo comando da então Procuradoria-Geral da República. O atual ministro Gilmar Mendes foi advogado da União - aliás, ainda hoje no Supremo é identificado como um ministro que na maioria das vezes vota de acordo com o interesse da União.
A relação é longa. O advogado Paulo Brossard, um dos oradores mais aclamados que passaram pelo Senado, foi ministro da Justiça de Sarney antes de ser indicado para uma vaga do Supremo. Nelson Jobim foi ministro da Justiça de Fernando Henrique antes de aportar no STF. O atual advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, era considerado outra "pule de dez" num governo petista, até uma operação da Polícia Federal, a Porto Seguro, envolver auxiliares da AGU numa investigação sobre venda de pareceres.
O ex-ministro da Justiça Thomaz Bastos só não foi para o Supremo porque já chegou ao governo Lula, em 2003, com a idade acima da máxima permitida pela Constituição - ele é de 1935 e estava, à época, a caminho dos 68 anos. No entanto, transformou-se num dos mais influentes "fazedores" de ministros do STF. Também integrante do grupo de notáveis do PT, sua voz tinha peso junto a Lula. Coube a ele entrevistar o "primeiro negro" da história do Supremo - antes de Joaquim Barbosa o mulato Pedro Lessa integrou a Corte Suprema nos primeiros anos do século XX.
Sem dúvida, a mais polêmica das indicações do governo Lula, como se veria mais tarde. Não pelo fato de ser afrodescendente, mas por seus votos, quase sempre aplaudidos pela opinião pública, e atitudes anticorporativas. Atualmente, Lula costuma dizer que o melhor ministro do Supremo indicado por ele foi Carlos Alberto Direito, um juiz conservador e religioso. Direito foi autor de um voto decisivo na decisão que estabeleceu os critérios para a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (RR).
Atual presidente do Supremo, Barbosa foi eleito pela revista "Time" uma das cem pessoas mais influentes do planeta. Mas não se pode dizer que tenha agradado a Lula com sua atuação no STF, especialmente como relator da AP 470, o mensalão que o ex-presidente diz nunca ter existido - ou melhor, não ter passado de um simples caixa 2 eleitoral. Na entrevista com o ministro da Justiça, Barbosa deixou Thomaz Bastos bem impressionado. À época ele estava dando aulas no exterior como professor visitante - o presidente do STF é fluente em francês, inglês, espanhol e alemão. Também toca violino e piano. Outro "notável" que falou bem de Barbosa foi o ex-ministro do tribunal Sepúlveda Pertence.
À época havia um negro com o currículo considerado melhor que o de Barbosa. Mas ele fora secretário do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, ligado a Paulo Maluf, portanto, inaceitável para o PT. A questão ideológica não é fundamental, mas pode atrapalhar. A própria Dilma descartou um nome para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região só porque numa lista de apoio ao candidato estava a bancada de deputados do Rio e entre eles o radical Jair Bolsonaro.
Pertence, Thomaz Bastos e outros advogados como Sigmaringa Seixas, de Brasília, integram um seleto grupo no qual os governantes se aconselham antes de decidir por uma indicação para os tribunais superiores e até os de primeira e segunda instâncias. No governo Lula também influía muito a chamada "esquerda jurídica", integrada basicamente por Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Comparato e Dalmo Dallari. O ex-presidente pensava que o grupo indicaria um deles, quando os convocou para uma conversa, ainda no primeiro semestre de 2003. Havia consenso, entre os três, em torno do nome de Carlos Ayres Britto, o ministro que agora é substituído por Luís Roberto Barroso.
Além da "esquerda jurídica", Britto também contava com o apoio do então deputado federal Marcelo Déda. Ele próprio disputara uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT de Sergipe.
Só um ano depois, em junho de 2004, Lula indicaria para o Supremo o nome do amigo Eros Grau. Sua passagem pelo STF deixou marcas: ele foi o relator do processo que considerou recíproca a anistia concedida em 1979, no regime militar. Ainda hoje a lei é discutida e há integrantes da Comissão da Verdade que defendem sua revisão para permitir a punição dos autores de tortura na ditadura.
Lula quis fazer outros amigos ministros do Supremo. Um deles é Sigmaringa Seixas, um caso raro, pois sempre recusou a oferta com o argumento de que não havia se preparado para o cargo. Outro foi o jurista carioca Nilo Batista, ex-governador do Rio, que assumiu o cargo quando Leonel Brizola se afastou para concorrer à Presidência da República. Mas foi pela via familiar e da amizade com o sindicalista Luiz Marinho, atual prefeito de São Bernardo do Campo, que Lula chegou ao nome do ministro Ricardo Lewandowski, revisor e principal defensor dos acusados de integrar o esquema do mensalão.
Na lista em que apareceu o nome de Lewandowski também estava Luiz Fachin, considerado por Dilma para a vaga de Ayres Britto, antes de a presidente se definir por Barroso. Na realidade, eram quase dez os nomes. Só depois de Lewandowski cumprir o circuito de praxe, em Brasília, é que passaram a circular nos bastidores da capital histórias sobre sua amizade com Marisa, mulher de Lula, Luiz Marinho e o próprio presidente da República. Mas Lewandowski tinha um currículo tão invejável - desembargador, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro atuante da OAB/SP - que as noites da mesa de buraco, em São Bernardo, não precisaram fazer força.
Outra indicação de Lula, a ministra Carmen Lúcia, também tinha pistolão: Sepúlveda Pertence. Com ela concorria Misabel Derzi, também de Minas, mas a consulta do presidente a Pertence, seu primo, foi decisiva.
O ministro Luiz Fux já frequentava as listas de candidatos desde o governo Lula. O próprio ex-presidente, em uma das ocasiões, recebeu uma lista de apoio a Fux dos parlamentares do Rio. Entre os nomes dos parlamentares estava o de Simão Sessim (PP-RJ). Embora Lula gostasse de Sessim, ficou intrigado, ele não passava de um inexpressivo deputado do Rio. Até João Pedro Stédile, o iracundo presidente do MST, havia pedido por Fux. Lula já topara com Fux até em palanques eleitorais. "Sabe aquele processo que o preocupa?", teria perguntado Fux, sem mencionar expressamente o mensalão. "Eu mato no peito."
Por precaução ou por ter outras prioridades, o fato é que Lula estava propenso, mas não indicou o candidato cujo arco de apoios ia do MST ao ex-deputado Delfim Netto. Quando Dilma teve de indicar o substituto do ministro Grau - Lula deixara a vaga para a nova presidente, sua aliada, preencher -, a quantidade de apoios ao nome de Fux havia aumentado. E entre eles estava também o então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci.
O julgamento do mensalão expôs supostos compromissos que o ministro teria assumido para ser indicado. Entre eles, o de absolver José Dirceu, com quem esteve depois de ser nomeado. Fux nega as informações, mas reconheceu que, depois de confirmado pelo Senado, esteve com Dirceu e também com o deputado João Paulo Cunha, outro acusado de integrar o esquema do mensalão. O próprio Dirceu, interessado no caso, propagou o encontro. Verdadeira ou não, a gincana de Luiz Fux - que foi implacável com os acusados de integrar o esquema do mensalão - para conseguir ser indicado serviu de alerta para a presidente. Todos fazem campanha, mas essa foi a mais abrangente e menos discreta de que se tem notícia.
Em dezembro de 2011 Dilma fizera sua segunda indicação para o Supremo. Não havia muita saída: o nome a ser escolhido deveria ser o de uma mulher, pois substituiria a primeira mulher nomeada para o Supremo, Ellen Gracie. Dilma não só sempre foi muito atenta à questão de gênero como também Ellen Gracie fora nomeada num governo do PSDB. Mas a escolhida, apesar do currículo impecável, também apresentava traços de uma sugestão familiar: Rosa Weber, ministra que os advogados que atuam no Supremo consideram um verdadeiro iceberg, é gaúcha e tem relações de amizade com a filha e com o ex-marido da presidente. A filha, Paula, aliás, é procuradora do Trabalho, o tribunal de origem da ministra.
Semanas antes de ser indicado por Dilma, o advogado Luís Roberto Barroso encontrou-se com um amigo que acompanhara praticamente toda a sua trajetória de advogado de sucesso, mas sempre preterido nas indicações para o Supremo. Barroso, que é carioca, mudara-se fazia alguns anos para Brasília, onde consolidou um círculo de amizades que incluía alguns "fazedores de ministros" do STF. Atuou muito no tribunal e suas causas foram tão bem-sucedidas que a indicação foi louvada, sem exceção.
Na conversa que se seguiu, o advogado fez uma confidência: ele já vencera causas de primeira grandeza no Supremo, vencera um câncer, mas não estava mais disposto a fazer o circuito de jantares, peregrinação a gabinetes de autoridades e conchavos políticos a que um candidato a uma cadeira no Supremo em geral é submetido. Um verdadeiro "Tour de France", como brincam os advogados, em referência a uma das principais provas ciclísticas do calendário europeu, com seus 3 mil quilômetros de estradas irregulares e montanhosas. Trajeto no qual tombaram biografias como a do tributarista Heleno Torres e Luiz Fachin, ambos vítimas da incompreensão dos códigos que devem ser observados por um bom candidato.
O que Barroso talvez não soubesse é que as desventuras de Luiz Fux "traumatizaram" a presidente, que resolvera apertar mais os parafusos do esquema de indicações para o Judiciário. A conjunção das escolhas mudara e mais do que nunca ele cabia à perfeição no figurino desejado pela presidente da República.
A prática das listas de apoios parlamentares é antiga, mas Dilma, na cruzada para melhorar o nível intelectual do Judiciário, não parece se comover tanto com os abaixo-assinados. De início, a presidente parecia se inclinar por indicações "tecnocráticas", como pareceram suas primeiras escolhas para o Superior Tribunal de Justiça: a presidente da República simplesmente preteriu um nome apoiado por todos os governadores da Amazônia, incluindo o petista Tião Viana (AC) e a pemedebista Roseana Sarney, e outro com o apoio público da CUT e do governador de Sergipe e amigo Marcelo Déda.
Os nomes escolhidos, por outro lado, pareciam dar razão à interpretação dos meios jurídicos. Exemplo claro da opção pela "tecnocracia" seria a nomeação do advogado paulista Antonio Carlos Ferreira, diretor-jurídico da Caixa por oito anos. À sua atuação nesse cargo é atribuído o fim de cerca de 2,5 milhões de ações nas quais a estatal era parte. Isso graças a um exitoso programa de conciliação e à decisão de não mais recorrer em processos cujas teses já haviam sido estabelecidas por decisões anteriores dos tribunais.
Na sabatina a que se submeteu no Senado antes da aprovação de sua indicação no plenário, Luís Roberto Barroso respondeu a uma pergunta sobre o processo de indicação de ministros para o Supremo pelo presidente da República e a aprovação do Senado, que o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) considerou "meramente homologatória". O ainda advogado indicado respondeu que considerava o modelo brasileiro melhor "do que o modelo alternativo que se pratica no mundo", que é o alemão.
A indicação dos alemães é feita diretamente pelo Legislativo "por cada uma das Casas legislativas". Segundo o ministro, as "circunstâncias da Alemanha favorecem isso porque, por uma convenção não expressa, os partidos se alternam na indicação dos nomes, independentemente de maioria no parlamento. Tradicionalmente são indicados professores de direito constitucional ou pelo menos uma figura com expressão acadêmica.
Barroso prefere a fórmula brasileira, parecida com a dos Estados Unidos. Isso porque, "no modelo brasileiro e no estágio político brasileiro, o presidente da República tem uma responsabilidade pessoal muito nítida, o que os americanos chamam de "accountability"". Ou seja: é do conhecimento público que Fernando Henrique nomeou o ministro Gilmar Mendes; Sarney nomeou Celso de Melo; Fernando Collor nomeou o primo Marco Aurélio Mello; e Lula nomeou o ex-ministro Ayres Britto. De acordo com Barroso, "essa possibilidade de conduzir a responsabilidade política a um agente político eletivo eu pessoalmente acho melhor". Talvez Barroso não saiba: Lula se arrependeu de ter indicado Ayres Britto. Acha que ele passou a votar contra o governo só para mostrar independência.
* Artigo publicado no Valor Econômico, 14/06/2013
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"Sabe aquele processo que o preocupa?", teria perguntado Fux, sem mencionar expressamente o mensalão. "Eu mato no peito".
As instâncias para chegar ao Supremo
Raymundo Costa e Rosângela Bittar *
A presidente Dilma Rousseff levou seis meses para escolher o nome do sucessor do ministro Carlos Ayres Britto no Supremo Tribunal Federal (STF). Pouco tempo, se comparado ao que o advogado Luís Roberto Barroso esperou por essa indicação. Desde 2003, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez suas primeiras indicações para a Suprema Corte, Barroso frequenta a lista dos nomes analisados no Palácio do Planalto para o cargo. A designação chegou, finalmente, no fim de maio.
"Eu gosto dele porque é um homem de coragem", disse a presidente Dilma Rousseff a um interlocutor do PT, ao comentar a escolha. Provavelmente se referia às causas que Barroso defendeu no Supremo, polêmicas e nem sempre simpáticas a grande parte da opinião pública.
Barroso, por exemplo, patrocinou a causa Cesare Battisti, um italiano saído direto dos anos 1970 que o governo de Silvio Berlusconi queria extraditar e julgar pelo crime de terrorismo. Barroso também advogou no Supremo em defesa da união homoafetiva e das pesquisas com células-tronco embrionárias.
A rigor, o único critério para a indicação de um ministro para o Supremo é o candidato ser um cidadão com "mais de 35 anos e menos de 65 de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada", os termos definidos na Constituição. Na prática, por mais que se diga que a presidente mudou critérios e tornou as escolhas mais técnicas, todas as indicações são políticas. Dilma, de fato, está empenhada em melhorar o nível intelectual dos tribunais.
A diferença em relação ao ex-presidente Lula talvez seja de estilo. Assim que pôs os pés no Palácio do Planalto, Lula não escondeu de ninguém que pretendia nomear para o Supremo Tribunal Federal o jurista Eros Grau, um advogado oriundo do antigo Partidão (Partido Comunista Brasileiro), preso e torturado em 1972, amigo do ex-presidente, integrante do conselho de notáveis do PT - quando o partido ainda era oposição - e membro da comissão especial que o ex-presidente Itamar Franco montou para acompanhar a revisão constitucional de 1993. Era pule de dez para a vaga do ex-ministro Sydney Sanches, a primeira aberta no governo de Lula.
No entanto, o presidente escolheu o ministro Cezar Peluso, um nome de grande prestígio do Tribunal de Justiça de São Paulo que esteve para ser indicado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso com o apoio de José Serra, o adversário de Lula na eleição de 2002. Pesaram, na decisão do presidente, a opinião do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sem dúvida o auxiliar de maior influência nesses assuntos no primeiro governo petista. Outros amigos também advertiram Lula que dois ministros paulistas estavam se aposentando do Supremo e havia a tradição de o TJ de São Paulo sempre ter um nome no STF. Além disso, Peluso era quase uma unanimidade. Até o jurista Saulo Ramos, que fora consultor da União no governo Sarney, apoiava sua indicação.
Além disso, outras duas cadeiras estavam prestes a vagar com a aposentadoria de seus titulares e Lula poderia usar uma delas para acomodar Eros Grau. Antes de nomear o amigo, no entanto, Lula indicou, ainda em 2003, o atual presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa. Já havia no PT a discussão de nomear um negro para o Supremo. Segundo apurou o Valor, o primeiro a falar em Barbosa foi o então coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. É certo que ele encaminhou o nome de Joaquim Barbosa para Sérgio Sérvulo da Cunha, chefe de gabinete do ministro Thomaz Bastos.
Muito se especula sobre as conversas do presidente da República com os candidatos a ministro de um tribunal superior, sobretudo do Supremo. Não há muito mistério. Quando chega ao gabinete presidencial, geralmente o futuro ministro já teve uma conversa inicial com o ministro da Justiça ou outro auxiliar da confiança do presidente. Nessas conversas, o tema em geral são as políticas públicas. Não se pergunta ao candidato como ele vota em determinada situação, mas fica clara a maior ou menor preocupação do governo com determinados assuntos.
Nenhum presidente, seja Lula ou Fernando Henrique, e antes deles, indicaria para ministro do STF alguém inclinado a conceder uma liminar que parasse o país. Agora, por exemplo, Dilma certamente não indicaria ministro um advogado ou juiz que concedesse uma liminar paralisando as obras da hidrelétrica de Belo Monte. Dilma, na realidade, não só manteve o "mantra" das políticas públicas como leva em consideração a bagagem cultural e humanista do candidato que terá de lidar com temas contemporâneos e perspectivas filosóficas, como a pesquisa com células-tronco embrionárias.
Quando indicou Peluso para o STF, Lula quase foi convencido pelo então poderoso chefe da Casa Civil, José Dirceu, a escolher o juiz paulista Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior, presidente da Associação de Juízes para a Democracia e muito ligado ao PT. Lula só viria a indicar um nome indiscutivelmente ligado a José Dirceu, José Antonio Dias Toffoli, em outubro de 2009, já em plena fase de instrução da Ação Penal 470 - a do mensalão -, na qual um dos réus é o ex-ministro da Casa Civil. No julgamento da ação no Supremo, Toffoli só livrou José Dirceu, acusado de ser o arquiteto do mensalão. Em relação aos demais acusados, votou parecido com outros ministros do Supremo.
Havia um outro critério, pelo menos até o governo José Sarney (1985-1990): o procurador-geral da República, o consultor (hoje advogado) da União e o ministro da Justiça eram uma espécie de "candidatos naturais" a uma das 11 cadeiras do Supremo. O ministro Sepúlveda Pertence, que também viria a ser um dos integrantes do grupo de notáveis do PT, foi nomeado por Sarney depois de passar pelo comando da então Procuradoria-Geral da República. O atual ministro Gilmar Mendes foi advogado da União - aliás, ainda hoje no Supremo é identificado como um ministro que na maioria das vezes vota de acordo com o interesse da União.
A relação é longa. O advogado Paulo Brossard, um dos oradores mais aclamados que passaram pelo Senado, foi ministro da Justiça de Sarney antes de ser indicado para uma vaga do Supremo. Nelson Jobim foi ministro da Justiça de Fernando Henrique antes de aportar no STF. O atual advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, era considerado outra "pule de dez" num governo petista, até uma operação da Polícia Federal, a Porto Seguro, envolver auxiliares da AGU numa investigação sobre venda de pareceres.
O ex-ministro da Justiça Thomaz Bastos só não foi para o Supremo porque já chegou ao governo Lula, em 2003, com a idade acima da máxima permitida pela Constituição - ele é de 1935 e estava, à época, a caminho dos 68 anos. No entanto, transformou-se num dos mais influentes "fazedores" de ministros do STF. Também integrante do grupo de notáveis do PT, sua voz tinha peso junto a Lula. Coube a ele entrevistar o "primeiro negro" da história do Supremo - antes de Joaquim Barbosa o mulato Pedro Lessa integrou a Corte Suprema nos primeiros anos do século XX.
Sem dúvida, a mais polêmica das indicações do governo Lula, como se veria mais tarde. Não pelo fato de ser afrodescendente, mas por seus votos, quase sempre aplaudidos pela opinião pública, e atitudes anticorporativas. Atualmente, Lula costuma dizer que o melhor ministro do Supremo indicado por ele foi Carlos Alberto Direito, um juiz conservador e religioso. Direito foi autor de um voto decisivo na decisão que estabeleceu os critérios para a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (RR).
Atual presidente do Supremo, Barbosa foi eleito pela revista "Time" uma das cem pessoas mais influentes do planeta. Mas não se pode dizer que tenha agradado a Lula com sua atuação no STF, especialmente como relator da AP 470, o mensalão que o ex-presidente diz nunca ter existido - ou melhor, não ter passado de um simples caixa 2 eleitoral. Na entrevista com o ministro da Justiça, Barbosa deixou Thomaz Bastos bem impressionado. À época ele estava dando aulas no exterior como professor visitante - o presidente do STF é fluente em francês, inglês, espanhol e alemão. Também toca violino e piano. Outro "notável" que falou bem de Barbosa foi o ex-ministro do tribunal Sepúlveda Pertence.
À época havia um negro com o currículo considerado melhor que o de Barbosa. Mas ele fora secretário do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, ligado a Paulo Maluf, portanto, inaceitável para o PT. A questão ideológica não é fundamental, mas pode atrapalhar. A própria Dilma descartou um nome para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região só porque numa lista de apoio ao candidato estava a bancada de deputados do Rio e entre eles o radical Jair Bolsonaro.
Pertence, Thomaz Bastos e outros advogados como Sigmaringa Seixas, de Brasília, integram um seleto grupo no qual os governantes se aconselham antes de decidir por uma indicação para os tribunais superiores e até os de primeira e segunda instâncias. No governo Lula também influía muito a chamada "esquerda jurídica", integrada basicamente por Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Comparato e Dalmo Dallari. O ex-presidente pensava que o grupo indicaria um deles, quando os convocou para uma conversa, ainda no primeiro semestre de 2003. Havia consenso, entre os três, em torno do nome de Carlos Ayres Britto, o ministro que agora é substituído por Luís Roberto Barroso.
Além da "esquerda jurídica", Britto também contava com o apoio do então deputado federal Marcelo Déda. Ele próprio disputara uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT de Sergipe.
Só um ano depois, em junho de 2004, Lula indicaria para o Supremo o nome do amigo Eros Grau. Sua passagem pelo STF deixou marcas: ele foi o relator do processo que considerou recíproca a anistia concedida em 1979, no regime militar. Ainda hoje a lei é discutida e há integrantes da Comissão da Verdade que defendem sua revisão para permitir a punição dos autores de tortura na ditadura.
Lula quis fazer outros amigos ministros do Supremo. Um deles é Sigmaringa Seixas, um caso raro, pois sempre recusou a oferta com o argumento de que não havia se preparado para o cargo. Outro foi o jurista carioca Nilo Batista, ex-governador do Rio, que assumiu o cargo quando Leonel Brizola se afastou para concorrer à Presidência da República. Mas foi pela via familiar e da amizade com o sindicalista Luiz Marinho, atual prefeito de São Bernardo do Campo, que Lula chegou ao nome do ministro Ricardo Lewandowski, revisor e principal defensor dos acusados de integrar o esquema do mensalão.
Na lista em que apareceu o nome de Lewandowski também estava Luiz Fachin, considerado por Dilma para a vaga de Ayres Britto, antes de a presidente se definir por Barroso. Na realidade, eram quase dez os nomes. Só depois de Lewandowski cumprir o circuito de praxe, em Brasília, é que passaram a circular nos bastidores da capital histórias sobre sua amizade com Marisa, mulher de Lula, Luiz Marinho e o próprio presidente da República. Mas Lewandowski tinha um currículo tão invejável - desembargador, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro atuante da OAB/SP - que as noites da mesa de buraco, em São Bernardo, não precisaram fazer força.
Outra indicação de Lula, a ministra Carmen Lúcia, também tinha pistolão: Sepúlveda Pertence. Com ela concorria Misabel Derzi, também de Minas, mas a consulta do presidente a Pertence, seu primo, foi decisiva.
O ministro Luiz Fux já frequentava as listas de candidatos desde o governo Lula. O próprio ex-presidente, em uma das ocasiões, recebeu uma lista de apoio a Fux dos parlamentares do Rio. Entre os nomes dos parlamentares estava o de Simão Sessim (PP-RJ). Embora Lula gostasse de Sessim, ficou intrigado, ele não passava de um inexpressivo deputado do Rio. Até João Pedro Stédile, o iracundo presidente do MST, havia pedido por Fux. Lula já topara com Fux até em palanques eleitorais. "Sabe aquele processo que o preocupa?", teria perguntado Fux, sem mencionar expressamente o mensalão. "Eu mato no peito."
Por precaução ou por ter outras prioridades, o fato é que Lula estava propenso, mas não indicou o candidato cujo arco de apoios ia do MST ao ex-deputado Delfim Netto. Quando Dilma teve de indicar o substituto do ministro Grau - Lula deixara a vaga para a nova presidente, sua aliada, preencher -, a quantidade de apoios ao nome de Fux havia aumentado. E entre eles estava também o então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci.
O julgamento do mensalão expôs supostos compromissos que o ministro teria assumido para ser indicado. Entre eles, o de absolver José Dirceu, com quem esteve depois de ser nomeado. Fux nega as informações, mas reconheceu que, depois de confirmado pelo Senado, esteve com Dirceu e também com o deputado João Paulo Cunha, outro acusado de integrar o esquema do mensalão. O próprio Dirceu, interessado no caso, propagou o encontro. Verdadeira ou não, a gincana de Luiz Fux - que foi implacável com os acusados de integrar o esquema do mensalão - para conseguir ser indicado serviu de alerta para a presidente. Todos fazem campanha, mas essa foi a mais abrangente e menos discreta de que se tem notícia.
Em dezembro de 2011 Dilma fizera sua segunda indicação para o Supremo. Não havia muita saída: o nome a ser escolhido deveria ser o de uma mulher, pois substituiria a primeira mulher nomeada para o Supremo, Ellen Gracie. Dilma não só sempre foi muito atenta à questão de gênero como também Ellen Gracie fora nomeada num governo do PSDB. Mas a escolhida, apesar do currículo impecável, também apresentava traços de uma sugestão familiar: Rosa Weber, ministra que os advogados que atuam no Supremo consideram um verdadeiro iceberg, é gaúcha e tem relações de amizade com a filha e com o ex-marido da presidente. A filha, Paula, aliás, é procuradora do Trabalho, o tribunal de origem da ministra.
Semanas antes de ser indicado por Dilma, o advogado Luís Roberto Barroso encontrou-se com um amigo que acompanhara praticamente toda a sua trajetória de advogado de sucesso, mas sempre preterido nas indicações para o Supremo. Barroso, que é carioca, mudara-se fazia alguns anos para Brasília, onde consolidou um círculo de amizades que incluía alguns "fazedores de ministros" do STF. Atuou muito no tribunal e suas causas foram tão bem-sucedidas que a indicação foi louvada, sem exceção.
Na conversa que se seguiu, o advogado fez uma confidência: ele já vencera causas de primeira grandeza no Supremo, vencera um câncer, mas não estava mais disposto a fazer o circuito de jantares, peregrinação a gabinetes de autoridades e conchavos políticos a que um candidato a uma cadeira no Supremo em geral é submetido. Um verdadeiro "Tour de France", como brincam os advogados, em referência a uma das principais provas ciclísticas do calendário europeu, com seus 3 mil quilômetros de estradas irregulares e montanhosas. Trajeto no qual tombaram biografias como a do tributarista Heleno Torres e Luiz Fachin, ambos vítimas da incompreensão dos códigos que devem ser observados por um bom candidato.
O que Barroso talvez não soubesse é que as desventuras de Luiz Fux "traumatizaram" a presidente, que resolvera apertar mais os parafusos do esquema de indicações para o Judiciário. A conjunção das escolhas mudara e mais do que nunca ele cabia à perfeição no figurino desejado pela presidente da República.
A prática das listas de apoios parlamentares é antiga, mas Dilma, na cruzada para melhorar o nível intelectual do Judiciário, não parece se comover tanto com os abaixo-assinados. De início, a presidente parecia se inclinar por indicações "tecnocráticas", como pareceram suas primeiras escolhas para o Superior Tribunal de Justiça: a presidente da República simplesmente preteriu um nome apoiado por todos os governadores da Amazônia, incluindo o petista Tião Viana (AC) e a pemedebista Roseana Sarney, e outro com o apoio público da CUT e do governador de Sergipe e amigo Marcelo Déda.
Os nomes escolhidos, por outro lado, pareciam dar razão à interpretação dos meios jurídicos. Exemplo claro da opção pela "tecnocracia" seria a nomeação do advogado paulista Antonio Carlos Ferreira, diretor-jurídico da Caixa por oito anos. À sua atuação nesse cargo é atribuído o fim de cerca de 2,5 milhões de ações nas quais a estatal era parte. Isso graças a um exitoso programa de conciliação e à decisão de não mais recorrer em processos cujas teses já haviam sido estabelecidas por decisões anteriores dos tribunais.
Na sabatina a que se submeteu no Senado antes da aprovação de sua indicação no plenário, Luís Roberto Barroso respondeu a uma pergunta sobre o processo de indicação de ministros para o Supremo pelo presidente da República e a aprovação do Senado, que o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) considerou "meramente homologatória". O ainda advogado indicado respondeu que considerava o modelo brasileiro melhor "do que o modelo alternativo que se pratica no mundo", que é o alemão.
A indicação dos alemães é feita diretamente pelo Legislativo "por cada uma das Casas legislativas". Segundo o ministro, as "circunstâncias da Alemanha favorecem isso porque, por uma convenção não expressa, os partidos se alternam na indicação dos nomes, independentemente de maioria no parlamento. Tradicionalmente são indicados professores de direito constitucional ou pelo menos uma figura com expressão acadêmica.
Barroso prefere a fórmula brasileira, parecida com a dos Estados Unidos. Isso porque, "no modelo brasileiro e no estágio político brasileiro, o presidente da República tem uma responsabilidade pessoal muito nítida, o que os americanos chamam de "accountability"". Ou seja: é do conhecimento público que Fernando Henrique nomeou o ministro Gilmar Mendes; Sarney nomeou Celso de Melo; Fernando Collor nomeou o primo Marco Aurélio Mello; e Lula nomeou o ex-ministro Ayres Britto. De acordo com Barroso, "essa possibilidade de conduzir a responsabilidade política a um agente político eletivo eu pessoalmente acho melhor". Talvez Barroso não saiba: Lula se arrependeu de ter indicado Ayres Britto. Acha que ele passou a votar contra o governo só para mostrar independência.
* Artigo publicado no Valor Econômico, 14/06/2013
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