26 abril 2012

Como imaginar uma orgia

"Com a banalização do grampo telefônico e da minicâmera escondida, temos o que faltava no quadro. Temos todos os sórdidos detalhes e a orgia às claras. Temos o que enoja".

Luis Fernando Verissimo

A minicâmera e o grampo telefônico ainda podem fazer mais pela moral na política do que toda a fiscalização e todos os mandamentos cristãos juntos. Supõe-se que depois dos escândalos recentemente grampeados as pessoas fiquem mais cautelosas, ou mais reticentes. Corruptos e corruptores continuarão a existir, mas não agirão nem falarão mais tão livremente, pelo menos não antes de procurar a câmera e o microfone escondidos. O que deve no mínimo dificultar os negócios.

Os avanços da técnica revolucionaram o registro histórico. Imagine se quando o Kennedy foi assassinado já existissem as gravadoras e os celulares que hoje substituem as câmeras fotográficas até no aniversário do cachorro. Em vez daquele precário filme em 8mm do atentado, estudado e reestudado quadro a quadro na busca de vestígios de uma conspiração, haveria teipes e fotos de todos os ângulos e com todas as respostas, como a cara, o nome e o CIC dos possíveis conspiradores.

Mas a técnica, ao mesmo tempo que desestimula a falcatrua, comprova a denúncia, desmancha o mistério e enriquece a notícia, pode empobrecer nossa percepção dos fatos. As grandes batalhas e os grandes eventos da era pré-fotográfica foram registrados em quadros épicos em que o artista ordenava a cena em função do efeito, não do fato, ou não exatamente do fato. A Primeira Guerra Mundial não foi mais terrível do que muitas guerras anteriores, só foi a primeira guerra filmada, a primeira com a imagem tremida e sem cor, e por isso parece tão mais feia do que as guerras heroicamente pintadas. A Guerra do Vietnã foi a primeira transmitida pela TV, a primeira em que o sangue respingou no tapete da sala. Por isso deu nojo. Os americanos aprenderam a lição e transformaram sua invasão do Iraque num videogame.

Até surgir a possibilidade de ser tecnicamente denunciado, o político corrupto podia contar com a condescendência do público. Mesmo quando não havia dúvidas quanto à sua corrupção, havia sempre a suspeita de que não era bem assim. Sua culpa - até se ouvir sua voz gravada combinando a divisão dos milhões, ou ver sua imagem forrando os sapatos com dinheiro - era sempre uma conjetura. Imaginávamos o que acontecia nos bastidores do poder corrupto, mas era um pouco como imaginar uma orgia romana, ou visualizar uma orgia romana através da imaginação de um artista. Agora, não. Com a banalização do grampo telefônico e da minicâmera escondida, temos o que faltava no quadro. Temos todos os sórdidos detalhes e a orgia às claras. Temos o que enoja.


* Artigo publicado em vários jornais, entre eles, O Globo, 26/04/2012.

 
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