03 outubro 2022

POR UM TRIZ



Faltou pouco pro dia nascer feliz, mas Lula continua favorito.

    Faltou muito pouco para Lula chegar lá. Faltaram menos de dois pontos, cerca de 1,8 milhão de votos , para ele ter sido eleito em primeiro turno. O problema agora é que o bolsonarismo fará uma guerra suja nesse segundo turno. O cenário em cada estado é muito incerto, com o voo cego do erro amostral das pesquisas em alguns estados importantes (não todos, importante dizer). Mas, apesar de tudo isso ser verdade, é bom lembrar, e esse deve ser o espírito essencial:

  • Lula jamais ganhou uma eleição em primeiro turno. Nem quando era presidente da República (2006). E disputou daquela vez uma eleição com uma polarização mais ou menos nesse mesmo patamar. E ganhou;
  • Esta foi a eleição do orçamento secreto, da máquina eleitoral do Centrão colada no discurso bolsonarista e de, convenhamos, uma militância muito mais aguerrida e com sangue nos olhos do lado de lá do que de cá;
  • Lula ainda é favorito e, provavelmente, Simone Tebet vai apoiá-lo. O PDT do Ciro também, mas, de Ciro, o que falar do sujeito? Difícil. E, infelizmente, o nome público mais evidente do PDT é Ciro. Se Ciro topar ao menos fechar sua matraca de insanidades contra Lula e o PT, já seria uma grande ajuda. Ocorre que, neste segundo turno, o apoio de Tebet é mais relevante, sobretudo por ela ser mulher, ter muito mais empatia e poder ser um rosto na campanha que atraia mulheres, em proporção ainda maior, além de indecisos. É bom lembrar que a abstenção de cerca de 20% é um fator de muita importância a ser vencido;
  • A rejeição a Bolsonaro é grande e difícil de ser revertida em tão pouco tempo. Difícil, mas não impossível. 
  • Houve muitas surpresas negativas. As principais delas: São Paulo e Rio Grande do Sul. Mas também houve muitas surpresas pra lá de positivas, como na Bahia, Piauí e Ceará. Então, o jogo está difícil, mas não está nem mesmo empatado. Lula tem mais de seis milhões de votos de vantagem (57,2 milhões de votos contra 51,06 mi). Não é fácil Bolsonaro conquistar um milhão e meio de votos por semana e superar esta vantagem em tão pouco tempo, até 30 de outubro (menos que isso apenas se esse voto voto for conquistado sobre o eleitorado de Lula, o que é bem mais difícil);
  • A estratégia da campanha, do amor contra o ódio; da democracia contra o autoritarismo; da pacificação contra a desunião; do alerta de que o Brasil não é um partido; de que o governo é para cuidar dos mais pobres, isso tudo teve efeitos muito positivos e precisa ser reforçado. Isso ajudou a garantir que Lula tivesse tamanha vantagem, no primeiro turno. Qualquer vacilação em manter essa linha é gol contra.

Precisamos entender a estratégia do adversário
    
    Embora Bolsonaro tenha a seu favor o orçamento secreto, a PEC que despejou dinheiro público em sua campanha e na campanha de seus aliados, sem contar o uso eleitoreiro da bandeira e das cores do Brasil, associando facilmente a propaganda oficial à sua candidatura, ainda assim a grande pergunta é: como um governo que teve a pior gestão da pandemia (pior até mesmo que a de Trump), afundou a economia e está metido em tantos escândalos comprovados de corrupção, como ele consegue se manter com tão elevada votação?
  • Bolsonaro encampou a guerra dos ricos contra os pobres travestida de questão moral e ética e de questão de honra para alguns setores que se sentem atacados;
  • Ele associou-se ao imaginário religioso, apesar de todos os sinais de que ele faz isso de forma descaradamente oportunística, valendo-se de pastores que fazem de suas igrejas um grande negócio. O escândalo das barras de ouro do pastor e ex-ministro Milton Ribeiro é o flanco mais propício para mostrar essa relação promíscua;
  • A extrema direita e o Centrão tornaram-se uma coisa só. O PL e o PP, que chefiam os esquemas, tornaram-se antros de bolsonaristas. Valdemar Costa Neto revelou recentemente, em entrevista, que um dos grandes objetivos do PL era justamente atrair o extremismo para a política - ele falou isso no sentido de acomodar e acalmar o extremismo, como se estivesse fazendo um grande favor, mas sabe-se que o que ele de fato quer é voto.

Como superar esse impasse?

    Lula tem que agregar à sua estratégia uma linha de diálogo com os religiosos, em especial católicos e evangélicos, de modo mais explícito. 
  • Religiosos de todos os matizes precisam ter voz na coordenação de campanha e dar testemunhos em programas. Não se combate o extremismo religioso sem entender a gramática e mais exatamente a sintaxe do discurso religioso. Então, não é empatia, é amor ao próximo. Não é gasto público, equilíbrio fiscal e reforma tributária, é cuidar dos mais pobres. Não é unir, mas congregar o país. Não é Estado laico, é liberdade religiosa e respeito à , às igrejas, aos ritos de todas as religiões (pelo "Estado laico", claro, mas a expressão dispensa ser pronunciada neste segundo turno por parecer grego à maioria). O vocabulário da campanha e do candidato deve usar mais palavras e expressões que são familiares ao próprio Lula: humanidade, compaixão, compadecimento, cuidado, amor ao próximo, fé;
  • Se não for pedir demais, menos analogias futebolísticas e mais parábolas, mais testemunhos, mais histórias de vida e de superação ajudadas por políticas públicas e que amparam famílias, crianças, idosos, mulheres;
    Quem está na política e quer ser uma autoridade do Estado deve entender que a religião é uma parte essencial do raciocínio e do discurso dos pobres. Ainda hoje ela é sua principal psicologia (ou psiquiatria). Em muitos casos, é o escritório de bem-estar social mais próximo de muitas comunidades. Isso não é retroceder em nenhum ponto do programa. É apenas não brigar com a realidade e não ajudar a quem quer isolar os democratas e progressistas desse público.
    A trajetória política de Lula é própria da referência bíblica de exaltar os humilhados. Aliás, o Lula preso e vilipendiado é a melhor analogia de um político massacrado em sua dignidade e que teve seu lar devassado e sua família desrespeitada, mas que as urnas exaltaram, mais de uma vez.
    Convenhamos, Lula ter saído desse primeiro turno em primeiro lugar é um milagre (a palavra é esta mesma). Lula pode dizer que se dispôs a concorrer às eleições porque o Brasil hoje é uma casa dividida, e uma casa dividida não se sustenta. Essas palavras e frases precisam ser ditas. Pode não parecer, mas elas fazem muita diferença. São códigos, palavras mágicas para conectar o discurso do candidato a um eleitorado que tem sido trabalhado para repugnar o candidato do PT.
    Lula ganhou entre os católicos. Não é possível, em pouco tempo, ganhar o jogo entre os evangélicos. Mas, entre esses, é preciso neutralizar ou mitigar o discurso de ódio para não continuar perdendo de 7 x 1:
  • Bolsonaro terceirizou a guerra religiosa com sua esposa, Michelle, e com pastores. Lula precisa de interlocutores nesse campo ou parecerá que ele não tem ninguém, e tem.
  • Na lógica do discurso, é relativamente simples carimbar e associar Bolsonaro à figura do fariseu, do blasfemo, ou seja, de quem usa a religião em proveito próprio para enriquecer a si e à sua família. Bolsonaro não professa um único dos mandamentos cristãos: amar o próximo, não matar, não roubar. A invertida que Lula deu no padre de festa junina cabe em Bolsonaro de forma ainda mais certeira, na lata;
    O principal discurso de Bolsonaro para o segundo turno é sobre economia. Discurso que está pronto para ser desmontado:
  • Bolsonaro atribui dificuldades atuais ao "fique em casa" e à guerra da Rússia na Ucrânia. Há evidências que precisam ser mostradas de que não houve, para a maioria no Brasil, nem fique em casa (razão que levou à saída do então ministro da Saúde, Mandetta, e explica termos quase 800 mil mortos pela pandemia) e nem houve cuidado com a economia, que só piorou o que já estava muito ruim. 
  • Antes da pandemia e da guerra, o desemprego permanecia muito alto. Durante a guerra da Ucrânia, que hoje só se intensifica, a trajetória do preço do petróleo e do gás está caindo no mercado internacional. 
  • O Brasil viveu, durante todo esse período de pandemia, um "boom" de "commodities". 
  • O que na verdade salvou a economia foram dois fatores básicos: vacina e auxílio emergencial. Duas coisas sobre as quais Bolsonaro trabalhou contra. A campanha de primeiro turno não falou disso, não nesses termos;
  • Hoje, o governo Bolsonaro comemora dados que estão fazendo o país voltar a uma situação que não se via desde 2015, isso mesmo, no governo Dilma, quando eles diziam que estávamos no pior dos mundos. O grande feito de Bolsonaro, então, foi fazer o país retroceder ao que eles consideravam o fundo do poço. Com uma grande diferença: não estávamos no mapa da fome. Não havia fila do osso;
Por fim, é preciso reverter o 7 x 1 entre as forças de segurança pública:
  • É preciso construir uma ponte sobre esse abismo. Lula teve uma política de segurança efetiva e até mesmo muito dura contra o crime organizado. Pela primeira vez se viu ao vivo uma expulsão em massa de traficantes, em uma das vitórias mais espetaculares que pôs para correr um dos maiores grupos criminosos do país. Combater criminosos - e, nesse bolo, é preciso pôr traficantes e milícia -, é algo que a figura de Alckmin pode fazer melhor do que ninguém. "Ah, mas o Alckmin…"  Sim, o Alckmin. É o que temos de melhor para o momento. 
  • Para confrontar a milicianização da polícia, Alckmin é a melhor referência do "law and order", o que, malgrado muitos torçam o nariz, sempre foi um trampolim político não trivial da direita, mas é hoje a melhor insígnia para combater a milícia. O "law and order" tem sérios problemas, sobretudo derivados do racismo estrutural, mas, acreditem, a milicianização das polícias é pior - é o racismo desbragado e de extermínio. Alckmin tem autoridade para falar sobre o tema e, por isso, tem que aparecer mais ostensivamente. Ele pode e deve fazer isso lembrando do programa Segurança com Cidadania, que é de Lula, e não dele, mas o essencial é Alckmin se colocar como fiador para haver propostas para a defesa dos policiais no âmbito da valorização de carreiras essenciais do serviço público: ele falaria para a segurança pública; Lula, para a educação, saúde e assistência social.
Essas são algumas ideias básicas, polêmicas, que vão causar indignação em alguns setores, mas, cá entre nós, que chovam canivetes. Minha preocupação maior, confesso, é ganhar essas eleições, entendendo o tamanho do problema e dos retrocessos que vive o Brasil. Mas, se for por falta de citar algum comunista para embrulhar essas sugestões para presente, não seja por isso. Aqui vai um Deng Xiaoping e seu famoso ditado: "não importa a cor do gato, desde que ele cace ratos". 

* Antonio Lassance é cientista político e, nas horas vagas (que são poucas), escreve sobre política.














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