10 setembro 2016

Quem não conhece Paulo Freire não sabe o que está perdendo


e quem detesta Paulo Freire não sabe o que está falando 

Sua pedagogia prima pela autonomia do educando na construção dos saberes


Artigo de Paulo Cavalcante e Yllan de Mattos na Revista de História da Biblioteca Nacional.  


“Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Espanto geral. O que o nome do educador Paulo Freire estaria fazendo em uma manifestação contra a presidente Dilma Rousseff e o PT? 

Era março de 2015, e os protestos se davam no rastro da crise econômica, da desarticulação política das bases de sustentação do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e da corrosão de sua credibilidade. Mas a caixa de Pandora da vida política nacional havia sido destampada dois anos antes, nas manifestações de 2013, que liberaram das conhecidas amarras cordiais os males do autoritarismo, do ódio, da intolerância, do preconceito e do desapreço à democracia.

Haveria na obra de Paulo Freire alguma mensagem capaz de autorizar tamanha indignação e reprovação?

“Doutrinador” é aquele que prega, instrui, incute em alguém uma crença, um ponto de vista ou um princípio sectário, ou seja, realiza uma transferência de conteúdos, de si para o objeto de sua doutrinação. Nada está mais distante do pensamento pedagógico de Paulo Freire do que isto. Ele repele com contundência qualquer procedimento doutrinador: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, escreveu em Pedagogia da autonomia.

Suas recomendações sobre os saberes necessários à prática educativa são claras. Desde logo, e sempre, a prática: “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também na negação do mundo como uma realidade ausente de homens”, ensinou em Pedagogia do oprimido. O homem em suas relações com o mundo. Este é o pressuposto de toda compreensão e de toda ação educativa capaz de promover a autonomia e a libertação das pessoas. Não é que o mundo seja necessariamente uma prisão. Ele até pode ser, e muitas vezes é. O que importa aqui é pôr o homem em seu contexto, rompendo o aparente curso natural das coisas e identificando o conjunto de suas relações. Colocadas em perspectiva, elas se reconfiguram e geram conhecimento histórico sobre si e sobre o mundo, para si e para o mundo.

Promover a tomada de consciência e a transformação do indivíduo em sujeito qualificado de sua própria história: eis a prática (práxis) educativa de Paulo Freire. Ele assim o diz, sobre si mesmo, em Educação como prática da liberdade: “Todo o empenho do Autor se fixou na busca desse homem-sujeito que, necessariamente, implicaria em uma sociedade também sujeito. Sempre lhe pareceu, dentro das condições históricas de sua sociedade, inadiável e indispensável uma ampla conscientização das massas brasileiras, através de uma educação que as colocasse numa postura de autorreflexão e de reflexão sobre o seu tempo e espaço. (...) Autorreflexão que as levará ao aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras”.

Onde encontrar o ímpeto doutrinador em alguém que, em vez de pregar e impor, pergunta e escuta para compreender? Quando Paulo Freire retornou ao Brasil, em agosto de 1979, uma avalanche de repórteres cercou-o para saber sua opinião sobre a situação do país na época. Ele respondeu: “Vim  para reaprender o Brasil e, enquanto estiver no processo de reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil, não tenho muito a dizer. Tenho mais o que perguntar”. Sua atitude, antes de ser dogmática e taxativa, demonstra uma abertura irrestrita para o mundo, como aprendiz. 

A chave para compreendermos a acusação de “doutrinador marxista” contra Paulo Freire não está em sua obra. Encontra-se na mentalidade daqueles que produziram a mensagem, em sua compreensão estreita do que é educação e do que é ensinar. Essas pessoas acreditam piamente no mito da neutralidade da ação docente, segundo o qual o professor não tem cara, não tem lado, não toma partido, não pensa nem intervém de modo transformador na realidade social. Para elas, o professor deve estar unicamente comprometido com a sagrada missão de transmitir conteúdos anonimamente escolhidos, aparentemente desinteressados e oficialmente listados. Conteúdos supostamente eficazes, pragmáticos e destinados a aplacar a sanha competitiva por boas posições escolares e universitárias que tenham o condão de assegurar condições ideais de disputa nas escassas oportunidades de uma sociedade excludente. Na verdade, o acusador grita contra o espelho. É ele, e não Paulo Freire, quem prega a doutrinação. Qual? Diríamos, sem medo de errar: a “doutrinação bancária”, aquela que transfere “ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos”.

O caminho da autonomia e da liberdade aberto por Freire não foi concebido para o educando como doação de uma inteligência superior que se compraz na realização daquilo que considera ser o bem, ou seja, como alguém (sujeito) que sabe o que é melhor para o outro (objeto). A grandeza do pensamento de Freire está na redução da distância em relação ao educando, na disponibilidade para escutá-lo em suas diferenças, na abertura de dialógica para a transformação recíproca: são dois sujeitos em troca aberta, franca e transformadora. Enfim, o caminho é partilhado com o educando: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. (...) A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”.

A mentalidade conservadora dos acusadores rechaça a dimensão política da pedagogia concebida e posta em prática por Paulo Freire. “Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”, esclarece o educador. É por conta disso, provavelmente, que a mensagem no protesto decide ir além de uma doutrinação qualquer, e a qualifica: Freire estaria ligado a uma “doutrinação marxista”. Talvez sem saber, o acusador reedita uma crítica conservadora muito antiga contra Paulo Freire, baseada no fato de que seu trabalho é tão pedagógico como político. Mas é isso mesmo. Como afirmou Moacir Gadotti, o educador é político enquanto educador e o político é educador pelo próprio fato de ser político. Freire complementa: “seria uma ingenuidade reduzir todo o político ao pedagógico, assim como seria ingênuo fazer o contrário. (...) quando se descobre uma certa e possível especificidade do político, percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua vez a especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível proibir a entrada do político”.

Quanto à alcunha de “marxista”, pretensamente desqualificadora, é preciso dizer que Paulo Freire jamais deixou de destacar o papel emancipatório atribuído por Karl Marx à ciência e à pesquisa. Além disso, juntamente com outros intelectuais marxistas, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, o educador não só foi crítico de posições dogmáticas e mecanicistas, como reconheceu o valor universal da democracia e lutou intensamente para o seu desenvolvimento no Brasil. Sobre os confrontos em torno do seu legado, o próprio Marx certa vez disse: “O diabo os leve! O que sei é que eu não sou marxista”.

A pedagogia de Paulo Freire é radical, isto é, vem da e vai à raiz das coisas. Privilegia a cultura, os saberes e os valores dos educandos como ponto de partida e chegada de uma educação como prática da liberdade e da transformação. Quando lecionou a primeira aula em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, em 1963, Freire falou sobre o universo que cercava os estudantes: a leitura do mundo precede a leitura da palavra. No quadro negro, não escreveu “Ivo viu a uva”. Escreveu coisas oriundas daquele cotidiano popular, como “tijolo”. De imediato, o educando reconheceu-se naquela palavra e naquele contexto. Nada mais lhe era alheio: ele havia se tornado sujeito da aula. 

Esse encontro cultural acolheu e inseriu o educando, abrindo o caminho para a sua transformação. Por isso mesmo, é um ato político em seu sentido histórico: a discussão da polis em que vivemos e na qual queremos viver. Este talvez seja um dos pontos centrais da famosa citação do educador, replicada nas redes sociais como resposta dada pela Unesco ao cartaz levantado contra Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

Paulo Cavalcante é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Ensino de História em Rede Nacional – ProfHistória.
Yllan de Mattos é professor da Universidade Estadual Paulista e autor de A Inquisição Contestada (Mauad-X/Faperj, 2014).

Saiba Mais

GADOTTI, Moacir; FREIRE, Paulo & GUIMARÃES, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. 
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 20. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.















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