"Luiz Gushiken partiu como viveu: com coragem". (Dilma Rousseff, presidente da República).
"Nunca esqueceremos a contribuição generosa de Gushiken para a construção desse Brasil que sonhamos juntos e que sem ele não seria possível" (Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República).
“Quem é esse cara que foi preso por minha causa e eu nem conheço?”
Foi-se embora Luiz Gushiken, petista, sindicalista, ex-deputado federal e ex-ministro do primeiro governo Lula (2003 a 2006).
Lula
teve a primeira notícia sobre Gushiken quando este havia sido preso, em
plena ditadura militar, organizando um fundo de greve de solidariedade
dos bancários para os metalúrgicos. “Quem é esse cara que foi preso por
minha causa e eu nem conheço?”
Gushiken
foi presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, fundador da
CUT, em 1983, e um dos idealizadores do Departamento Nacional dos
Bancários da CUT, que deu origem à Confederação Nacional dos Bancários
(CNB-CUT).
Fundador
do PT, em 1980, foi membro de seu Diretório Nacional e Presidente do
Partido (de 1988 a 1990) durante a heroica campanha de 1989, a do
Lula-lá.
No
PT, foi também Secretário Sindical Nacional e Vice-Presidente
Nacional. Deputado constituinte e reeleito por mais dois mandatos, em
1998 abriu mão de disputar eleições.
O estrategista que gostava de Muhhammad Ali
Em
2002, Lula foi ao hospital tirá-lo da cama, em uma das inúmeras vezes
em que o “chininha”, como gostava de chamá-lo, seria derrubado, mas
não vencido, por um câncer agressivo. Havia perdido muitos de seus
quilos e parte razoável de seu intestino. Lula o queria na coordenação da campanha; depois, o faria coordenador-adjunto da transição de governo e, em seguida, ministro.
Gushiken
gostava de tudo que dissesse respeito, direta ou indiretamente, a
conhecimento estratégico. Era aficionado por estudar métodos e técnicas
de planejamento; lia sobre a arte da guerra e grandes batalhas. Gostava
de lutas de boxe e nelas via também estratégia. A luta entre Muhammad
Ali e George Foreman, em 1974, a “jungle fight” montada no Zaire de
Mobuto e transmitida para o mundo, era por ele considerada a luta do
século. Muito frequentemente, lhe servia como analogia.
A
luta mostrava como alguém em desvantagem podia vencer um oponente mais
forte, se usasse a estratégia correta. Foreman era, naquele momento, um
oponente superior a Muhammad Ali. A estratégia de Ali parecia estranha e
perigosa: apanhar, segurar o tranco até o último round e cansar o
adversário. Assim fez, esperando o momento exato até que seu rival,
exausto, estivesse no ponto para ser derrotado. Muhammad Ali
reconquistou seu cinturão quando a maioria o julgava acabado.
O samurai na comunicação de governo
Mais
que uma analogia, Gushiken fez uso dessa estratégia inúmeras vezes. Por
exemplo, quando precisou dar um “chega pra lá” em Duda Mendonça,
marqueteiro da campanha de 2002 e um dos publicitários oficiais do
governo, a partir de 2003. Gostemos ou não de Duda Mendonça, ninguém
discute que ele é um dos melhores naquilo que faz: marketing político.
Por sua vez, o conhecimento da área de comunicação não era um dos pontos
fortes de Gushiken.
Duda
circulava pela Esplanada e conversava diretamente com ministros e com o
próprio presidente sobre publicidade, campanhas e marketing. Eminência
parda da área, agia como um ministro sem pasta. Percebendo a investida,
Gushiken tomou uma atitude defensiva. Deu uma entrevista na qual dizia
que Duda seria transformado em uma
espécie de consultor para cuidar da imagem do governo e seus programas.
Todos à volta de Gushiken imaginavam que ele estava entregando os pontos.
No
dia seguinte, as manchetes dos jornais apelidavam Duda de “o ministro da
propaganda” de Lula. Exposto, Duda acusou o golpe e disse que gostava de
fazer publicidade, e não de ter que ficar dando explicações à imprensa
todo dia. Procurou Gushiken e disse: “o ministro é você, e mais
ninguém”. O publicitário nunca mais discutiu nada sobre a publicidade
sem antes passar pela Secom. Promovendo a figura de Duda, Gushiken
obrigou-o, diante do estigma de ministro da propaganda e do holofote
negativo, a jogar a toalha.
Na verdade, Gushiken
nunca quis ser ministro da Secretaria de Comunicação. Queria uma
Secretaria de Assuntos Estratégicos, que já não mais existia - havia
acabado durante o segundo mandato de FHC. Mas Lula insistia na ideia da
comunicação. Precisava de um ministro de sua absoluta confiança para
cuidar da estratégia
de centralização da comunicação de governo, como forma de imprimir suas
marcas. A solução salomônica foi juntar as duas coisas: o que Lula
queria e o que Gushiken pedia. Assim nasceu a Secretaria de Comunicação e
Gestão Estratégica da Presidência da República.
Reviravoltas na comunicação
A
comunicação de governo sofreu uma reviravolta sob o comando do
“chininha”, do “Gushi”, do “samurai” - para citar alguns dos vários
apelidos pelos quais Gushiken era referido.
Antes
do governo Lula, havia ministérios, como o da Educação, de Paulo Renato
Souza; o da Saúde, de José Serra; e o do Desenvolvimento Agrário, de
Raul Jungmann, que suplantavam em muito a estrutura de comunicação da
própria Presidência da República. A partir de Gushiken, os ministérios
passaram a fazer exclusivamente a dita publicidade de utilidade pública.
A publicidade institucional de governo estaria a cargo só da
Presidência.
O
Governo Federal passou a ter um negociador único (a Secom) da verba
publicitária, e a relação com os veículos de comunicação inverteu-se.
Alguns veículos eram privilegiados na distribuição de verbas
publicitárias sem qualquer relação com a
audiência ou com o público-alvo das campanhas.
Uma dessas campanhas, para o Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf), gerou outra reviravolta. Quando veio o plano de mídia, com a lista dos
veículos, o cronograma de veiculação das peças publicitárias e os
valores a serem gastos, não havia veículos do interior. Ou seja, a
publicidade de um programa destinado a agricultores seria feita, em sua
maior parte, nas capitais, e não em áreas rurais.
O
ministro devolveu a planilha, pediu mais rádio e mais jornais do
interior. As agências voltaram em polvorosa. Como fazer propaganda em
veículos do interior? Ninguém sabe quem eles são e que audiência têm. A
resposta de Gushiken foi uma espécie de “se virem e descubram”.
A
teimosia do dirigente acabou gerando o primeiro processo de
regionalização da verba publicitária. A própria equipe da Secom começou a
cadastrar e a incentivar o processo de formação ou fortalecimento das
associações de veículos do interior, que se organizaram para contratar
mecanismos para a aferição de audiência para que pudessem ser
remunerados conforme sua capacidade de difusão da informação.
Pela
primeira vez se discutiu claramente que a publicidade deveria
considerar a audiência (o que não ocorria antes), mas não se
resumir a ela. A escolha de veículos também deveria ser adequada aos segmentos
de público específicos aos quais a mensagem das campanhas se destinasse. É algo que hoje mereceria ser feito em relação à internet
e ainda não o foi.
Cartas críticas e puxões de orelha nos ministros
Gushiken
também levou para a Secom, a pedido de Lula, o jornalista Bernardo
Kucinski, que desde a campanha eleitoral produzia uma análise das
notícias publicadas pela imprensa. Kucinski passou a produzir as Cartas
Críticas durante as madrugadas, e o
documento seguia bem cedo para o Palácio da Alvorada. As cartas eram críticas em relação ao governo e também quanto à distorção de informações de parte da imprensa.
Lula
sistematicamente usava a Carta Crítica como um
roteiro para seus puxões de orelha em ministros. Durante suas caminhadas
matinais, o presidente lia o documento e disparava ligações para cobrar
providências de seus auxiliares. Um deles reclamou com o ministro da
Secom: “O Bernardo tem que parar com isso. Todo dia o presidente me liga
pra reclamar”. Gushiken respondeu: “mas é exatamente pra isso que
chamamos o Bernardo”.
Outra novidade foi a criação de um boletim chamado Em Questão, uma espécie de Voz do Brasil, só que impresso. O Em Questão
era o principal instrumento do governo para divulgar suas notícias de forma rápida. Embora tivesse versão impressa, sua maior circulação se
dava por email. A imprensa o apelidou de Pravda (em russo, “a
verdade”), nome do famoso jornal da antiga União Soviética. A fama
disseminada acabou ajudando a divulgar sua existência e a chamar a
atenção para suas notícias. Ao final de 2006, o Em Questão chegava impresso ou por email a meio milhão de pessoas.
Ainda em 2003, foi criado o Café com o presidente, que trazia de volta ao rádio o recado semanal do presidente da República. O programa existe até hoje - agora, Café com a presidenta.
Contra o complexo de vira-latas, "o melhor do Brasil é o brasileiro"
Em
2004, Gushiken convidou as principais agências de publicidade do setor
privado para uma ação conjunta, em parceria com as agências que serviam
ao governo. Os publicitários foram incentivados a pensar peças de uma
grande campanha para reforçar a autoestima dos brasileiros. Era a época
do combate sem tréguas ao “complexo de vira-latas”, expressão de Nélson
Rodrigues que Lula pegou emprestado para criticar os que não confiavam
no Brasil e falavam mal do país no exterior.
O
esforço em parceria deu origem à campanha “O melhor do Brasil é o
Brasileiro”, feita toda sobre exemplos de superação e valores como a
honestidade. O slogan "sou brasileiro e não desisto nunca" virou um
bordão.
As campanhas de autoestima, a regionalização dos gastos de publicidade, a criação do Fórum de Assessores de Comunicação, do Em Questão e do Café com o presidente, o fortalecimento da Radiobrás, da TV e das rádios educativas foram
alguns dos legados de Gushiken no comando da Secom. Muitos desses
legados foram abandonados por uma comunicação de governo que aos poucos foi perdendo peso político e hoje é destituída de qualquer sentido estratégico.
O inferno abre suas portas
Em
2005, o escândalo desencadeado pelas acusações de Roberto Jefferson,
presidente do PTB, levantou suspeitas sobre a comunicação do governo. O
pivô das acusações era o empresário Marcos Valério, um dos sócios da
agência DNA Propaganda. Valério ainda hoje é chamado de publicitário,
sem ser. Embora fosse sócio de uma agência publicitária, seu verdadeiro
negócio não era esse, e sim o sistema financeiro. Como disse a própria
presidente do Banco Rural, em depoimento à CPI e à Justiça, Valério
atuava como lobista em favor de bancos. O
dinheiro do que acabou conhecido como “mensalão”, carimbo criado por Jefferson,
era pago por bancos médios (como o Rural) ao lobista com a expectativa de terem
acesso a serviços que, até então, eram restritos aos grandes bancos.
Gushiken
sabia que as acusações contra ele tinham como objetivo atingir o
presidente Lula e quebrar as pernas da comunicação de governo. Mas
suspeitava também que muitas das ilações eram patrocinadas, de alguma
forma, por seu arqui-inimigo, Daniel Dantas.
Dantas
foi o mago das finanças do processo de privatização durante o governo
FHC. Canalizou o interesse de grandes fundos de investimento
estrangeiros e tinha peso sobre a decisão de vários fundos de pensão de
trabalhadores do setor público, que tiveram recursos utilizados
justamente para financiar a privatização de empresas estatais.
Em
2004, eis que a Polícia Federal, na Operação Satiagraha, que
investigava o escândalo da falência da Parmalat, descobriu que Dantas
contratara a Kroll, maior empresa de espionagem do mundo, para espionar,
entre outros, Luiz Gushiken. Na esteira da investigação, foi também
desvendada uma teia de relações de Dantas com o meio jornalístico, com
“profissionais” contratados para falar mal do ministro de Lula.
A
PF concluiu que Dantas havia montado uma verdadeira organização
criminosa, que acabou acusada dos crimes de quadrilha, corrupção
ativa, quebra de sigilo constitucional, exploração de prestígio e
obtenção ilegal de documentos confidenciais. O desfecho de tudo é
conhecido: Dantas foi preso e quase imediatamente solto pelo STF, e o
único que passou por dificuldades com o processo foi o delegado da
Polícia Federal que comandou a Satiagraha, Protógenes Queiroz, hoje
deputado federal (PCdoB-SP).
Acusado injustamente, finalmente inocentado
Gushiken,
desde o início, manteve-se convicto de que não havia dinheiro da
comunicação no dito mensalão. Dizia que a única maneira de algum valor
substancial da área ir parar nas mãos dos partidos seria se os veículos
estivessem remetendo os recursos de publicidade para campanhas
eleitorais. A quase totalidade do dinheiro da publicidade é gasto
justamente na veiculação de comerciais. Não fazia sentido.
Com
essa certeza em mãos, Gushiken foi para uma das comissões parlamentares de
inquérito montadas no Congresso e enfrentou gente como Eduardo Paes e
Gustavo Fruet. Ambos eram estrelas do PSDB no espetáculo midiático do
mensalão e diziam estar enfrentando o governo mais corrupto de toda a
história do Brasil. Paes e Fruet, hoje no PDMB e no PDT,
respectivamente, iriam depois se desculpar pessoalmente com Lula e pedir
de joelhos o apoio às suas campanhas às prefeituras do Rio de Janeiro e
de Curitiba, em 2012.
Acusado
injustamente, Gushiken foi inocentado na peça elaborada pelo
procurador-geral da República, no relatório de Joaquim Barbosa e pelo
voto de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. As manchetes do
dia seguinte de forma alguma lhe fizeram justiça. Dizem, ainda hoje, após sua
morte, que ele foi inocentado por “falta de provas”, como se fosse
possível haver provas de algo que não existiu.
Nenhum dos detratores pediu desculpas a Gushiken.
De volta à estratégia
Enquanto
vários ministros caíram, ao longo de 2005 e 2006, Gushiken ficou. Assim
que o escândalo do mensalão se instalou, percebeu que o duro golpe que
sofrera lhe abria uma oportunidade: a de convencer Lula de seu projeto
original. O presidente finalmente concordou em deixá-lo cuidar só de
assuntos estratégicos. Surgiu assim o Núcleo de Assuntos Estratégicos
(NAE), separado da Secom. Gushiken pediu para não ter status de ministro
e nem sala reservada no Palácio do Planalto.
De 2003 a 2006, em torno do projeto Brasil 3 Tempos
(2007, 2015, 2022), foram feitos estudos sobre biocombustíveis,
mudanças climáticas, nanotecnologia, macroeconomia para o
desenvolvimento, educação em tempo integral, tecnologias sociais,
reforma política, desenvolvimento regional e cenários de longo prazo,
entre outros.
Último round
Lula
reelegeu-se em 2006 e Gushiken foi convidado a continuar no governo.
Declinou. Queria um pouco de paz e achava que não ajudaria mais o
governo. Ao contrário, seria uma fonte permanente de insinuações e
ilações. Antevia o circo que seria montado em torno da AP 470, que ainda
estava longe de concluir por sua inocência.
Uma
de suas últimas batalhas foi travada contra a revista Veja. O semanário
havia publicado informações mentirosas a seu respeito. Indignado,
consultou um advogado, que o desestimulou a ingressar com a ação, pois,
mesmo ele estando com a razão e podendo provar que Veja havia mentido, o
processo seria demorado e o resultado era incerto. A indenização, se
viesse a ser concedida, seria menor que os honorários advocatícios e
pouco valeria para reparar o dano.
Gushiken
preferiu discordar do prognóstico e insistiu em entrar com a ação. O
samurai ainda teve tempo de ver a Justiça lhe dar ganho de causa. A
revista foi obrigada a indenizá-lo por danos morais. Espancado pela Veja
ao longo de todo o governo Lula, saiu-se vitorioso no último de seus
rounds.
Poucas
semanas depois de ter completado seus 63 anos, reuniu a família, fez um
balanço de sua vida, falou dos desafios do governo Dilma e do PT,
despediu-se. Já não tomava a medicação, pois ela não mais produzia efeito, a
não ser os negativos. Estava com 35 quilos.
O
13 que o acompanhou por toda a sua vida política selou seu derradeiro
fim. Gushiken morreu na noite do dia 13 de setembro de 2013.
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Antonio Lassance, doutor em Ciência Política pela Universidade de
Brasília, foi coordenador administrativo da transição de governo, em
2002; chefe de gabinete de Luiz Gushiken, de 2003 a 2005; e Secretário-Geral do Núcleo de Assuntos Estratégicos, em 2006. É Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do instituto.