15 julho 2012

Reforma trabalhista


Para melhorar, e não para piorar. Um bom debate se for feito nesta perspectiva apresentada pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen.

"Nós nos ressentimos de leis sobre terceirização, despedida em massa ou coletiva, de lei federal sobre assédio moral e sexual. De uma lei que adote no país novos tipos de contratos trabalho. Na Espanha, há o trabalho autônomo economicamente dependente de outro. É uma forma de prestação de trabalho em que não há vínculo empregatício, mas tem direitos específicos em função da forma como o serviço é prestado. Podíamos pensar na adoção de outros tipos de contrato como uma forma de inclusão no mercado de trabalho de milhões de trabalhadores informais".


"Tudo mudou, exceto a legislação trabalhista"
Presidente do TST defende revisão da CLT e diz que "imobilismo do Estado" está na origem da enxurrada de ações na Justiça

Geralda Doca *

O GLOBO: Como o senhor avalia a legislação trabalhista diante dos gargalos estruturais que o país enfrenta?

JOÃO ORESTE DALAZEN: A CLT cumpriu um papel importantíssimo no período em que foi editada, na década de 40 do século passado, na transposição de uma sociedade agrícola e até escravocrata para o nível industrial. Mas hoje deixa muito a desejar. Primeiro, porque é uma regulação rígida e fundada na lei federal, que praticamente engessa toda relação entre patrão e empregado; segundo, é excessivamente detalhista e confusa, o que gera insegurança jurídica, e, inevitavelmente, descumprimento, favorecendo o aumento de ações na Justiça; e terceiro, está cheia de lacunas. O mundo e a sociedade evoluíram. Tudo mudou, exceto a legislação trabalhista.

O que falta na CLT?

DALAZEN: Nós nos ressentimos de leis sobre terceirização, despedida em massa ou coletiva, de lei federal sobre assédio moral e sexual. De uma lei que adote no país novos tipos de contratos trabalho. Na Espanha, há o trabalho autônomo economicamente dependente de outro. É uma forma de prestação de trabalho em que não há vínculo empregatício, mas tem direitos específicos em função da forma como o serviço é prestado. Podíamos pensar na adoção de outros tipos de contrato como uma forma de inclusão no mercado de trabalho de milhões de trabalhadores informais.

Quais pontos da CLT precisam ser alterados?

DALAZEN: A CLT é minudente, como na fixação de uma hora noturna reduzida. Das 22h às 5h, você não trabalha sete horas, mas oito, porque a hora noturna é de 52,5 minutos. Outro dispositivo, que trata da função de confiança bancária, é um dos maiores fatores de litígio entre bancários e bancos. A jornada normal do bancário é de seis horas, mas esse dispositivo diz que se ele for designado para uma função de chefia a jornada passa a ser de oito horas, sem direto a hora extra, com uma gratificação de função. Há designação fraudulenta de bancários para exercer função de confiança, que, na prática, não se demonstra. Ele é chefe de si mesmo.

Qual sua avaliação sobre o projeto de flexibilização da CLT sugerido pelo Sindicato do ABC e defendido pela CUT?

DALAZEN: Essa proposta me entusiasma. O que se quer é regulamentar o comitê sindical de empresa, que é a antiga comissão de fábrica, ou seja, a representação dos empregados pelo local de trabalho. Permitir que, no próprio local de trabalho, haja eleição direta de representantes dos empregados e que ali se inicie e se trave, diariamente, uma negociação válida sobre direitos trabalhistas. É uma forma de agilizar a solução dos conflitos, diminuir a litigiosidade e atenuar o rigor da CLT, que gera hoje situações desconcertantes.

Que tipo de situações?

DALAZEN: Empresas e sindicatos não podem negociar o fracionamento das férias em três pagamentos; não podem negociar a redução do intervalo do descanso do almoço para 45 minutos e, em contrapartida, encerrar o expediente 15 minutos antes. As empresas ficam sujeitas a multa e pagamento de hora extra caso o empregado reclame na Justiça. Esses acordos não têm validade porque a CLT teima em afirmar que só por autorização do ministro do Trabalho se pode reduzir o intervalo entre as jornadas.

A exigência do ponto eletrônico pelo Ministério do Trabalho é um avanço ou um retrocesso?

DALAZEN: Em alguns casos, o ponto eletrônico é impraticável, tanto que houve sucessivos adiamentos na vigência da portaria do Ministério do Trabalho para esse fim. É mais um entrave para o funcionamento das empresas. Claro que se faz necessário, de alguma forma, um controle de ponto para se saber qual foi a jornada prestada pelos empregados. É do interesse dos empregados e das empresas. Agora, a forma de fazer esse controle tem que ser estudada de maneira mais adequada.

Por que é tão difícil mexer na CLT?

DALAZEN: Quando se fala na reforma trabalhista, pensa-se em pôr abaixo toda legislação, como se tudo fosse inútil e pernicioso. Não, a regulação das leis do trabalho tem que ter um cunho protecionista por natureza, porque é da índole do direito do trabalho, mas não exclusivamente protecionista, como é hoje. É preciso que se abra campo para uma negociação entre o capital e o trabalho. De imediato, além de suprirmos as lacunas, pois em vários pontos a legislação é omissa, deveríamos revisar e atualizar a CLT para permitir, pelo menos, uma ampliação da autonomia dos sindicatos para negociar com as empresas sob determinadas condições. Eles são os interlocutores que melhor conhecem a realidade econômica e social e poderiam fixar normas apropriadas e adequadas para determinados segmentos.

O governo pode ser forçado a mexer na CLT?

DALAZEN: O que se vê hoje é esse imobilismo do Estado em promover a reforma voltar-se contra o próprio Estado sob a forma de milhões de novas ações trabalhistas a cada ano, que só oneram a máquina pública. À medida que se propõe novas ações, faz-se necessário o crescimento no número de cargos e salários para juízes e servidores, prédios, varas, tribunais. Não surpreende que o Brasil seja o campeão mundial em processos trabalhistas. Só no ano passado, a Justiça recebeu 2,15 milhões de novos processos. Esse modelo já se esgotou e mostrou-se insatisfatório.

Na falta de iniciativa do Executivo, o que o TST pode fazer?

DALAZEN: O Tribunal vai suspender os julgamentos por uma semana em setembro para rever várias jurisprudências e propor projetos de lei para tornar a Justiça do Trabalho mais eficiente e rápida. Dentro dos assuntos a serem reexaminados está a questão do teletrabalho.

Por que menos de um terço dos trabalhadores que ganham ações trabalhistas na Justiça consegue receber?

DALAZEN: Uma das causas é a legislação processual trabalhista, da década de 40, que, como a CLT, é inadequada, anacrônica e ineficiente. O TST apresentou ao Congresso um projeto que adota meios de coerção mais enérgicos para a cobrança do crédito trabalhista. Por exemplo, estabelece multa para o empresário que não cumprir a decisão no prazo fixado por lei (como já previsto no processo civil); possibilidade mais ampla de execução na pendência de um recurso; e o parcelamento do pagamento de dívida. Hoje, só pode parcelar se fizer acordo.

Na lista dos maiores devedores do TST, as estatais estão no topo. Por quê?

DALAZEN: Há uma resistência injustificada de certos devedores no cumprimento das sentenças trabalhistas definitivas, em especial de algumas estatais, principalmente a Petrobras. A empresa é uma das que mais resistem ao pagamento de dívidas trabalhistas, além de ser uma das que mais interpõem recursos. Há execução trabalhista da Petrobras que se iniciou em 1980 e ainda tramita na Justiça. São 660 execuções da estatal iniciadas há mais de dez anos. Esses dados indicam que, no fundo, a União é o seu próprio tormento: por que uma empresa do porte e prestígio da Petrobras mantém essa postura de exacerbado amor à litigiosidade? Isso vem em detrimento da própria União, que suporta todos os encargos de custear uma máquina pesada como a da Justiça do Trabalho só para dar satisfação ao crédito. Para não falar na frustração de um credor que aguarda décadas para receber de uma empresa estatal, que deveria dar o exemplo.

Como o senhor vê a atuação do Estado contra o trabalho infantil?

DALAZEN: O Brasil se comprometeu internacionalmente a erradicar o trabalho infantil até 2020. Mas, apesar de termos observado uma pequena queda no número de trabalhadores infantis e jovens (entre 10 e 17 anos), de aproximadamente 13%, houve um significativo aumento na faixa dos 10 aos 13 anos. São cerca de quatro milhões de crianças e adolescentes que prestam serviço, em geral informal, perigoso ou insalubre, quando não criminoso. Recebi ano passado uma denúncia de que, em Minas Gerais, indústrias de cerâmica obtiveram autorização, por alvará da Justiça estadual, para o trabalho infantil. São deferimentos equivocados, contrariam a lei, compromissos internacionais, usurpando uma competência da Justiça do Trabalho.

O que deveria ser feito?

DALAZEN: É necessário que o Ministério do Trabalho reveja uma portaria em que franqueia, de forma excessiva, o trabalho de menores aprendizes. Por exemplo, considera-se menor aprendiz cortador de cana-de-açúcar e empacotador de supermercado. É uma infeliz diretriz abraçada pelo ministério. Também espero que o STJ equacione o conflito de competência entre a Justiça estadual e a Justiça do Trabalho.

Uma das críticas da OIT ao Brasil é que o país não pune trabalho escravo...

DALAZEN: No Brasil, a lei penal é inadequada para a responsabilização dos infratores. Falta clareza, também, ao qualificar como crime de condição análoga à escravidão a submissão do empregado a uma jornada exaustiva ou em situação degradante. A legislação penal brasileira está em descompasso com o conceito universal de trabalho escravo, que considera como tal os casos em que o trabalhador tem sua liberdade de ir e vir comprometida por força de uma opressão física ou psicológica. Isso deve ser punido de forma severa. Não conheço um caso de condenação criminal por trabalho forçado no Brasil. O Executivo pode e deve resolver essa questão. Há um projeto de lei antigo, já aprovado no Senado, que está na Câmara, que resolve essa questão, extirpando do conceito de trabalho escravo a ideia de jornada exaustiva e em condições degradantes.

* Entrevista publicada em O Globo, 15/07/2012

 
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