Marta Arretche, cientista política.
Mudanças ocorrem de forma lenta e incremental
Pergunta: Qual é o peso da questão federativa para as reformas políticas?
Por mais paradoxal que possa parecer, os avanços da neurociência têm revelado que o funcionamento do cérebro humano pode dificultar o progresso do conhecimento. Nosso cérebro tende a aceitar como verdadeiras proposições que nos são familiares e julgá-las falsas quando estranhas a nosso universo mental. Logo, proposições falsas, porém familiares, parecem corretas, ao passo que formulações corretas, mas inovadoras, tendem a ser rejeitadas. Assim, a repetição, mecanismo pelo qual ideias se tornam familiares, tende a ser mais frutífera do que a comprovação empírica para pavimentar a aceitação de explicações.
Sugiro que, pela via da repetição, a seguinte cadeia de ideias tornou-se familiar a nosso universo mental: temos um péssimo sistema tributário; logo, uma reforma tributária abrangente é urgente e necessária; entretanto, nosso sistema político é ao mesmo tempo a causa do primeiro e um obstáculo para a segunda. Nessa explicação, o desempenho do regime democrático contemporâneo estaria em franco contraste com o do regime militar, que realizou nossa última reforma tributária digna deste nome.
Pela via da repetição, difundiu-se também no Brasil a métrica de avaliar governos pela quantidade de reformas abrangentes que aprovam. O procedimento é contudo estranho à tradição da ciência política. Esta foi sintetizada em brilhante artigo de George Tsebelis (disponível em português), que estabelece que a ciência política "se interessa pela capacidade de um sistema político dar respostas a problemas à medida que surgem. A capacidade decisória é necessária quando a ausência de uma solução leva a um estado pior". Logo, é questão totalmente secundária se essas respostas se dão sob a forma de reformas abrangentes ou não.
Difundiu-se no Brasil a métrica de avaliar governos pela quantidade de reformas que aprovam
Pela via da repetição, difundiu-se a lenda de que Fernando Henrique e Lula aprovaram apenas medidas que ampliavam as receitas da União, como a renovação da CPMF e as desonerações de receita tributária.
Os números acima apontam entretanto em sentido distinto: mudanças nos sistemas tributário e fiscal não são impossíveis no Brasil.
Na verdade, nem Fernando Henrique Cardoso nem Lula foram inteiramente derrotados em suas iniciativas nas áreas tributária e fiscal. Entre outras medidas de impacto, Fernando Henrique fez a negociação da dívida dos Estados assim como aprovou a Lei Kandir e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A EC nº 42/2003, aprovada no governo Lula, introduziu o Simples e o compartilhamento dos cadastros das administrações tributárias. Logo, é mais correto afirmar que ambos realizaram apenas parcialmente sua agenda.
No governo Dilma Rousseff, foram aprovadas medidas de desoneração tributária, assim como a legislação que unifica em 4% as alíquotas interestaduais do ICMS incidente sobre produtos importados. A partir de 1º de janeiro de 2013, o espaço para a chamada "guerra dos portos" estará substancialmente reduzido.
É a estratégia abrangente de reforma, digna deste nome, que tem encontrado resistências. Dada a complexidade do sistema tributário e suas interfaces com questões federativas, advoga-se que apenas uma reforma ampla, que resolva todos os problemas acumulados, seja capaz de criar bases adequadas para o crescimento econômico e a melhor prestação de serviços. É essa métrica do sucesso que conduz à conclusão de que há reiterado fracasso quando, na verdade, há um processo contínuo de mudanças incrementais.
Na democracia, o modo mais regular de mudança das políticas públicas é pela via gradual e incremental
Pela via da repetição, fomos habituados a atribuir esse resultado a patologias do sistema político brasileiro. Contudo, não há nada de particular na mudança pela via gradual. Antes, é ponto bastante estabelecido na ciência política que, em regimes democráticos, mudanças radicais são mais raras que frequentes. A extensão das mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional nº 18/65 que, com algumas alterações, incorporou-se ao texto da Constituição de 1967 e ao Código Tributário de 1966, não pode ser dissociada das condições políticas que lhe deram origem. Sob as condições autoritárias do regime militar, seus proponentes não encontraram obstáculos institucionais e políticos e, portanto, não tiveram de negociar as reformas.
Na democracia, o modo mais regular de mudança das instituições e das políticas públicas é pela via gradual e incremental. Para os que invejam a capacidade de mudança do sistema político britânico, recomendo a leitura de um estudo feito pelo eminente cientista político Richard Rose: mais de um décimo das leis vigentes na Grã-Bretanha no início dos anos 80 foi editada quando a Rainha Vitória subiu ao trono em 1837 e mais de um terço daquelas leis já vigoravam quando a Rainha deixou o trono em 1901!
Reformas tributárias, em particular, têm maior potencial de mobilização política. Estão no centro da agenda dos governos contemporâneos.
Sendo contraditórias, mas igualmente desejáveis, essas aspirações mobilizam a punição eleitoral.
O impacto de uma lei muda em função do desaparecimento das condições que lhe deram origem
Governos eleitos com a promessa de reduzir impostos tendem a ser punidos eleitoralmente quando adotam as medidas de redução nos serviços públicos, que cortes nos impostos tendem a acarretar. Se a popularidade derivada do corte de impostos tem fôlego curto, o governante no poder tenderá a se opor a reformas que impliquem redução na capacidade de provisão de serviços e, para tal, buscará mobilizar os partidos de sua base parlamentar. Se, simultaneamente, os contribuintes - e, eventualmente, os partidos de oposição - se mobilizam a favor da redução dos impostos, reformas radicais em uma outra direção tornam-se menos prováveis.
Além disso, se, de um lado, a interdependência dos fenômenos torna atraente - e eventualmente necessária - a proposição de projetos abrangentes, de outro lado, propostas que pretendam mudar simultaneamente diferentes dimensões do status quo tornam mais difícil antecipar quem serão seus potenciais ganhadores e perdedores. As propostas de reforma submetidas ao Congresso por Fernando Henrique e Lula pretenderam unificar as alíquotas de cobrança dos impostos estaduais, mudar a tributação da origem para o destino e acabar com as isenções fiscais do ICMS ao mesmo tempo. A abrangência das mudanças implicou que seus proponentes tivessem grande dificuldade para fornecer garantias críveis de que a proposta não levaria de fato a uma situação pior.
Por fim, a interdependência das propostas pode dificultar as negociações. Tomemos dois pontos da agenda federativa de 2012: os critérios de partilha dos royalties do petróleo entre Estados e municípios, confrontantes ou não com a área do pré-sal, e os critérios de rateio dos recursos dos Fundos de Participação. As propostas em tramitação no Congresso acerca da partilha dos royalties determinam que essa seja feita com os mesmos critérios adotados para a partilha do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e do FPE (Fundo de Participação dos Estados). A atual regra de distribuição deste último, por sua vez, foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tendo seu prazo de validade vencido para dezembro deste ano.
Colabora para essa dinâmica incremental o fato de que leis se desatualizam em função de mudanças no contexto. O impacto de uma lei muda em função do desaparecimento das condições que lhe deram origem. Tomemos novamente a regra atual de rateio dos royalties do petróleo. Há poucas dúvidas sobre seu resultado: beneficia quase exclusivamente o Estado do Rio de Janeiro além de uma minoria de pequenos municípios.
Dado o volume de recursos transferidos para uns poucos municípios, a lei contribui substancialmente para a desigualdade de receita entre eles. Além disso, passados quase quinze anos de sua vigência, não há nenhuma evidência de que a população dos municípios beneficiados tenha melhores serviços públicos do que as demais. Há boas razões para a mobilização favorável a mudanças desta lei.
Não é razoável atribuir entretanto aqueles efeitos exclusivamente à Lei do Petróleo, datada de 1997. Esta foi formulada em decorrência do fim do monopólio estatal do petróleo, em 1995. Naquele contexto, a produção de petróleo off-shore era similar à do petróleo on-shore, assim como os patamares da produção brasileira e o preço do barril do óleo eram muito inferiores aos atuais. De lá para cá, mudanças nesses três fatores multiplicaram exponencialmente as receitas do petróleo e, com elas, o impacto da lei sobre a desigualdade de receitas entre Estados e municípios. Logo, o tema está na agenda devido a condições não previstas quando de sua formulação original.
O mesmo pode ser dito com relação à renegociação das dívidas estaduais. Em 1997, o governo federal concluiu parte de um amplo programa de controle do endividamento dos Estados e municípios, que comprometia o equilíbrio macroeconômico do país. A União assumiu aquelas dívidas em troca de contratos de refinanciamento com prazos de 30 anos, encargos financeiros com atualização monetária pela variação do IGP-DI e juros reais de 6% ao ano. Essa medida, considerada muito bem-sucedida à época, contribuiu decisivamente para o controle das finanças subnacionais e, por consequência, para a estabilização da economia brasileira.
Pela via da repetição, difundiu-se a explicação de que este é um tema não resolvido da agenda federativa brasileira. Sugiro que a presença deste item nessa agenda é decorrência direta das mudanças produzidas pela solução de 1997.
Embora seja compreensível que os que não estão contentes com o ritmo das mudanças prefiram um sistema político que favoreça mais rápida tramitação de propostas, não é evidente que a possibilidade de reformas radicais seja desejável. Em livro premiado pela American Political Science Association, Sven Steinmo revela que as regras do sistema tributário britânico variam dramaticamente em virtude do revezamento de trabalhistas e conservadores no poder, em contraste com o sistema sueco, conhecido por sua relativa estabilidade.
A facilidade para aprovar mudanças radicais por governos de um só partido na Grã-Bretanha, em contraste com os incentivos à negociação e ao incrementalismo nos governos de coalizão na Suécia, estariam na origem desses diferentes resultados. Nos anos 70, empresários britânicos apoiaram a adoção do sistema de representação proporcional na esperança de que governos de coalizão favorecessem um ambiente mais favorável ao planejamento dos negócios, evitando variações dramáticas na legislação produzidas pela alternância na composição das maiorias no Parlamento Moral da história: entre lendas e fatos, um sistema que permitisse mudanças rápidas e abrangentes poderia produzir um resultado pior!
Marta Arretche é pesquisadora sênior do Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, professora livre-docente do departamento de ciência política da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Artigo publicado no Valor Econômico - 02/05/2012.
Disponível em https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/5/2/mudancas-ocorrem-de-forma-lenta-e-incremental
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"Não é fato, portanto, que reformas tributária e fiscal estejam paralisadas. Antes, os fatos indicam que elas vêm sendo feitas de modo incremental".
Mudanças ocorrem de forma lenta e incremental
Pergunta: Qual é o peso da questão federativa para as reformas políticas?
Por mais paradoxal que possa parecer, os avanços da neurociência têm revelado que o funcionamento do cérebro humano pode dificultar o progresso do conhecimento. Nosso cérebro tende a aceitar como verdadeiras proposições que nos são familiares e julgá-las falsas quando estranhas a nosso universo mental. Logo, proposições falsas, porém familiares, parecem corretas, ao passo que formulações corretas, mas inovadoras, tendem a ser rejeitadas. Assim, a repetição, mecanismo pelo qual ideias se tornam familiares, tende a ser mais frutífera do que a comprovação empírica para pavimentar a aceitação de explicações.
Sugiro que, pela via da repetição, a seguinte cadeia de ideias tornou-se familiar a nosso universo mental: temos um péssimo sistema tributário; logo, uma reforma tributária abrangente é urgente e necessária; entretanto, nosso sistema político é ao mesmo tempo a causa do primeiro e um obstáculo para a segunda. Nessa explicação, o desempenho do regime democrático contemporâneo estaria em franco contraste com o do regime militar, que realizou nossa última reforma tributária digna deste nome.
Pela via da repetição, difundiu-se também no Brasil a métrica de avaliar governos pela quantidade de reformas abrangentes que aprovam. O procedimento é contudo estranho à tradição da ciência política. Esta foi sintetizada em brilhante artigo de George Tsebelis (disponível em português), que estabelece que a ciência política "se interessa pela capacidade de um sistema político dar respostas a problemas à medida que surgem. A capacidade decisória é necessária quando a ausência de uma solução leva a um estado pior". Logo, é questão totalmente secundária se essas respostas se dão sob a forma de reformas abrangentes ou não.
Difundiu-se no Brasil a métrica de avaliar governos pela quantidade de reformas que aprovam
De março de 1994 a março de 2012, foram aprovadas 70 emendas à Constituição de 1988. Destas, 12 alteraram artigos dos capítulos do Sistema Tributário Nacional e das Finanças Públicas. Do total de EC aprovadas, 28 afetaram diretamente Estados e municípios. Esses números subestimam largamente as mudanças legais adotadas. Excluem, para citar exemplos mais conhecidos, a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada como Lei Complementar, ou ainda mudanças nas regras das contribuições previdenciárias - da folha de salários para o faturamento -, introduzidas por medida provisória.
Pela via da repetição, difundiu-se a lenda de que Fernando Henrique e Lula aprovaram apenas medidas que ampliavam as receitas da União, como a renovação da CPMF e as desonerações de receita tributária.
Os números acima apontam entretanto em sentido distinto: mudanças nos sistemas tributário e fiscal não são impossíveis no Brasil.
Na verdade, nem Fernando Henrique Cardoso nem Lula foram inteiramente derrotados em suas iniciativas nas áreas tributária e fiscal. Entre outras medidas de impacto, Fernando Henrique fez a negociação da dívida dos Estados assim como aprovou a Lei Kandir e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A EC nº 42/2003, aprovada no governo Lula, introduziu o Simples e o compartilhamento dos cadastros das administrações tributárias. Logo, é mais correto afirmar que ambos realizaram apenas parcialmente sua agenda.
No governo Dilma Rousseff, foram aprovadas medidas de desoneração tributária, assim como a legislação que unifica em 4% as alíquotas interestaduais do ICMS incidente sobre produtos importados. A partir de 1º de janeiro de 2013, o espaço para a chamada "guerra dos portos" estará substancialmente reduzido.
Não é fato, portanto, que reformas tributária e fiscal estejam paralisadas. Antes, os fatos indicam que elas vêm sendo feitas de modo incremental.
É a estratégia abrangente de reforma, digna deste nome, que tem encontrado resistências. Dada a complexidade do sistema tributário e suas interfaces com questões federativas, advoga-se que apenas uma reforma ampla, que resolva todos os problemas acumulados, seja capaz de criar bases adequadas para o crescimento econômico e a melhor prestação de serviços. É essa métrica do sucesso que conduz à conclusão de que há reiterado fracasso quando, na verdade, há um processo contínuo de mudanças incrementais.
Na democracia, o modo mais regular de mudança das políticas públicas é pela via gradual e incremental
Pela via da repetição, fomos habituados a atribuir esse resultado a patologias do sistema político brasileiro. Contudo, não há nada de particular na mudança pela via gradual. Antes, é ponto bastante estabelecido na ciência política que, em regimes democráticos, mudanças radicais são mais raras que frequentes. A extensão das mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional nº 18/65 que, com algumas alterações, incorporou-se ao texto da Constituição de 1967 e ao Código Tributário de 1966, não pode ser dissociada das condições políticas que lhe deram origem. Sob as condições autoritárias do regime militar, seus proponentes não encontraram obstáculos institucionais e políticos e, portanto, não tiveram de negociar as reformas.
Na democracia, o modo mais regular de mudança das instituições e das políticas públicas é pela via gradual e incremental. Para os que invejam a capacidade de mudança do sistema político britânico, recomendo a leitura de um estudo feito pelo eminente cientista político Richard Rose: mais de um décimo das leis vigentes na Grã-Bretanha no início dos anos 80 foi editada quando a Rainha Vitória subiu ao trono em 1837 e mais de um terço daquelas leis já vigoravam quando a Rainha deixou o trono em 1901!
Reformas tributárias, em particular, têm maior potencial de mobilização política. Estão no centro da agenda dos governos contemporâneos.
São a matéria por excelência do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de paradoxo de Rousseau. Este consiste em desejar enquanto soberano o que se quer evitar ao máximo enquanto súdito. Desejamos que o Estado nos forneça mais e melhores serviços públicos, mas nos mobilizamos para não ser tributados.
Sendo contraditórias, mas igualmente desejáveis, essas aspirações mobilizam a punição eleitoral.
O impacto de uma lei muda em função do desaparecimento das condições que lhe deram origem
Governos eleitos com a promessa de reduzir impostos tendem a ser punidos eleitoralmente quando adotam as medidas de redução nos serviços públicos, que cortes nos impostos tendem a acarretar. Se a popularidade derivada do corte de impostos tem fôlego curto, o governante no poder tenderá a se opor a reformas que impliquem redução na capacidade de provisão de serviços e, para tal, buscará mobilizar os partidos de sua base parlamentar. Se, simultaneamente, os contribuintes - e, eventualmente, os partidos de oposição - se mobilizam a favor da redução dos impostos, reformas radicais em uma outra direção tornam-se menos prováveis.
Além disso, se, de um lado, a interdependência dos fenômenos torna atraente - e eventualmente necessária - a proposição de projetos abrangentes, de outro lado, propostas que pretendam mudar simultaneamente diferentes dimensões do status quo tornam mais difícil antecipar quem serão seus potenciais ganhadores e perdedores. As propostas de reforma submetidas ao Congresso por Fernando Henrique e Lula pretenderam unificar as alíquotas de cobrança dos impostos estaduais, mudar a tributação da origem para o destino e acabar com as isenções fiscais do ICMS ao mesmo tempo. A abrangência das mudanças implicou que seus proponentes tivessem grande dificuldade para fornecer garantias críveis de que a proposta não levaria de fato a uma situação pior.
Por fim, a interdependência das propostas pode dificultar as negociações. Tomemos dois pontos da agenda federativa de 2012: os critérios de partilha dos royalties do petróleo entre Estados e municípios, confrontantes ou não com a área do pré-sal, e os critérios de rateio dos recursos dos Fundos de Participação. As propostas em tramitação no Congresso acerca da partilha dos royalties determinam que essa seja feita com os mesmos critérios adotados para a partilha do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e do FPE (Fundo de Participação dos Estados). A atual regra de distribuição deste último, por sua vez, foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tendo seu prazo de validade vencido para dezembro deste ano.
Ora, o cálculo dos ganhos e perdas das propostas sobre os royalties depende da definição das regras de partilha dos fundos. Logo, enquanto estas últimas não forem definidas, muito dificilmente haverá um acordo em torno das regras para a partilha do petróleo.
Colabora para essa dinâmica incremental o fato de que leis se desatualizam em função de mudanças no contexto. O impacto de uma lei muda em função do desaparecimento das condições que lhe deram origem. Tomemos novamente a regra atual de rateio dos royalties do petróleo. Há poucas dúvidas sobre seu resultado: beneficia quase exclusivamente o Estado do Rio de Janeiro além de uma minoria de pequenos municípios.
Dado o volume de recursos transferidos para uns poucos municípios, a lei contribui substancialmente para a desigualdade de receita entre eles. Além disso, passados quase quinze anos de sua vigência, não há nenhuma evidência de que a população dos municípios beneficiados tenha melhores serviços públicos do que as demais. Há boas razões para a mobilização favorável a mudanças desta lei.
Não é razoável atribuir entretanto aqueles efeitos exclusivamente à Lei do Petróleo, datada de 1997. Esta foi formulada em decorrência do fim do monopólio estatal do petróleo, em 1995. Naquele contexto, a produção de petróleo off-shore era similar à do petróleo on-shore, assim como os patamares da produção brasileira e o preço do barril do óleo eram muito inferiores aos atuais. De lá para cá, mudanças nesses três fatores multiplicaram exponencialmente as receitas do petróleo e, com elas, o impacto da lei sobre a desigualdade de receitas entre Estados e municípios. Logo, o tema está na agenda devido a condições não previstas quando de sua formulação original.
O mesmo pode ser dito com relação à renegociação das dívidas estaduais. Em 1997, o governo federal concluiu parte de um amplo programa de controle do endividamento dos Estados e municípios, que comprometia o equilíbrio macroeconômico do país. A União assumiu aquelas dívidas em troca de contratos de refinanciamento com prazos de 30 anos, encargos financeiros com atualização monetária pela variação do IGP-DI e juros reais de 6% ao ano. Essa medida, considerada muito bem-sucedida à época, contribuiu decisivamente para o controle das finanças subnacionais e, por consequência, para a estabilização da economia brasileira.
O novo contexto macroeconômico permitiu a redução da taxa básica de juros. Esta, por sua vez, abriu uma janela de oportunidades para que os governadores demandem a renegociação das dívidas estaduais com o governo federal.
Pela via da repetição, difundiu-se a explicação de que este é um tema não resolvido da agenda federativa brasileira. Sugiro que a presença deste item nessa agenda é decorrência direta das mudanças produzidas pela solução de 1997.
Embora seja compreensível que os que não estão contentes com o ritmo das mudanças prefiram um sistema político que favoreça mais rápida tramitação de propostas, não é evidente que a possibilidade de reformas radicais seja desejável. Em livro premiado pela American Political Science Association, Sven Steinmo revela que as regras do sistema tributário britânico variam dramaticamente em virtude do revezamento de trabalhistas e conservadores no poder, em contraste com o sistema sueco, conhecido por sua relativa estabilidade.
A facilidade para aprovar mudanças radicais por governos de um só partido na Grã-Bretanha, em contraste com os incentivos à negociação e ao incrementalismo nos governos de coalizão na Suécia, estariam na origem desses diferentes resultados. Nos anos 70, empresários britânicos apoiaram a adoção do sistema de representação proporcional na esperança de que governos de coalizão favorecessem um ambiente mais favorável ao planejamento dos negócios, evitando variações dramáticas na legislação produzidas pela alternância na composição das maiorias no Parlamento Moral da história: entre lendas e fatos, um sistema que permitisse mudanças rápidas e abrangentes poderia produzir um resultado pior!
Marta Arretche é pesquisadora sênior do Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, professora livre-docente do departamento de ciência política da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Artigo publicado no Valor Econômico - 02/05/2012.
Disponível em https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/5/2/mudancas-ocorrem-de-forma-lenta-e-incremental
Para seguir o blog e receber postagens atualizadas, use a opção "seguir", ao lado.
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