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17 abril 2024

Há uma omissão imperdoável na biografia que Richard Evans fez de Eric Hobsbawm


Por incrível que pareça, Richard J. Evans, um dos mais proeminentes e prolíficos historiadores deste século, não entendeu a proposta historiográfica que transformou Hobsbawm não apenas no mais conhecido e duradouro representante da magnífica historiografia marxista inglesa como, também, no historiador mais popular do século XX.

O trabalho monumental de Evans (Eric Hobsbawm: A Life in Historycertamente é hoje a fonte mais rica existente sobre os arquivos deixados por Hobsbawm, incluindo informações privilegiadas de seus diários e mesmo da correspondência privada. Mas, quando "documentos falam por si", é sinal de que faltou ao biógrafo algo mais. Há tanta minúcia, tanta conversa anedótica ou de alcova e tanta descrição enfadonha sobre acontecimentos pouco relevantes que Evans se esqueceu do essencial: explicar o que transformou Hobsbawm nesse colosso historiográfico.

O livro de Evans adotou o esquema mais tradicional e “évènementiel” possível, algo que certamente não faz jus ao legado historiográfico do biografado. Na biografia, a infância de Hobsbawm é o primeiro capítulo (“The English Boy, 1917–1933”). Depois vem, nada surpreendentemente, a adolescência. Em seguida, um capítulo sobre o início da vida adulta, já no mundo acadêmico, e assim por diante. Os outros capítulos seguem a mesma sequência cronológica linear: de 1946–1954, 1954–1962, 1962–1975, 1975–1987, 1987–1999 e 1999–2012.
 


Evans tratou Hobsbawm
(foto) como uma celebridade da cultura pop, e não como um historiador que ganhou essa proeminência na cultura pop por alguma razão, o que restou mal explicado. Talvez a ideia fosse essa mesma, para atrair mais leitores interessados em conhecer a celebridade que era historiador do que o historiador que se tornou tão célebre. 

De todo modo, Evans deixou Hobsbawm de cabeça para baixo. 
 
Há também uma omissão imperdoável. Como revelo na resenha deste livro, recém publicada, Evans inexplicavelmente negligenciou um dos mais importantes projetos intelectuais de Hobsbawm, a História do Marxismo. De 1978 a 1982, a História do Marxismo reuniu centenas de artigos e autores dos mais diversos países, mas o biógrafo nem sequer cita esse projeto nem a coleção que envolveu alguns dos maiores expoentes marxistas à época, como Georges Haupt, Franz Marek, István Mészáros, Ernesto Ragionieri (um intelectual muito próximo de Palmiro Togliatti, líder indiscutível do PCI após a Segunda Guerra Mundial), entre muitos outros." 

Difícil entender essa lacuna. A explicação mais provável, se é que há alguma, é que essa obra foi publicada primeiramente na Itália, pela editora Einaudi. Só posteriormente foi traduzida para vários idiomas. Inclusive, a primeira edição em inglês foi feita nos Estados Unidos, e não no Reino Unido. Mas é incrível como isso passou despercebido de Evans, pois há certamente uma correspondência pessoal nos arquivos de Hobsbawm a esse respeito. E o livro está lá, na estante deixada por ele. Como algo dessa magnitude fugiu do radar do biógrafo?


A História do Marxismo é tão importante que Hobsbawm foi seu editor e passou meia década de intenso trabalho dedicado a essa coleção que, ao final, alcançou mais de quatro mil páginas. Mais importante, a obra registrava mais uma vez um aspecto essencial ao projeto historiográfico de Hobsbawm: apresentar um painel abrangente da diversidade de teorias, concepções e vertentes do marxismo. Hobsbawm estava mais uma vez travando sua luta para mostrar o quanto a trajetória política e intelectual do marxismo não se limitava ao marxismo vulgar.

Faltou a Evans, em sua biografia, olhar o essencial.

Leia mais e, se interessar, cite:

Lassance, A. (2024). Book Review: Eric Hobsbawm: A Life in History. Review of Radical Political Economics, 12 April 2024. Avaiable at: https://doi.org/10.1177/04866134241244838 

LASSANCE, Antonio. Eric Hobsbawm: a life in history (resenha). Review of Radical Political Economics, 12 abril 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1177/04866134241244838  







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30 janeiro 2023

O que aconteceu quando o Brasil experimentou Estado mínimo e economia ultraliberal?



"De acordo com a versão 2020 da base Maddison, de 56 países para os quais há dados em 1930, o Brasil tinha a 4a menor renda per capita daquele ano. 
O Brasil terminou o período da República Velha como um país pobre em termos relativos e absolutos apesar de ser o país mais populoso da América Latina com grande mercado interno potencial. 
Em 1930 [fim da I República, ou República Velha], o Brasil, com cerca de 33,6 milhões de habitantes, respondia por 31% da população da América Latina (107,4 milhões de habitantes), contra 15,4% do México e 11,1% da Argentina."
“De 1889 a 1930, o desempenho da economia brasileira não poderia deixar de decepcionar os que esperavam que as tendências liberalizantes desses anos pudessem acelerar o crescimento do país: o PIB per capita cresceu a uma taxa anual de cerca de 0,9% que contrasta com os cerca de 3% anuais do período 1929-1980 (encadeando Goldsmith para 1890-99 e Haddad para1900- 1930 cf. Bacha e Greenhill, 1992, p. 321 e Maddison, 2006, p. 76). 
Numa comparação direta com outros países, tomando-se em cada ponto de observação o dado para o Brasil como igual a 100, o múltiplo do PIB per capita da Argentina passou de 271 para 377 entre 1890 e 1928-29, enquanto as cifras correspondentes para o México foram 127 e 157 respectivamente. Ou seja, ampliou-se o atraso entre o Brasil e esses países nesses anos. 
Com relação aos EUA, também aumentou a distância, pois os índices foram 427 e 587 para as mesmas datas, enquanto que relativamente ao Reino Unido, o hiato se reduziu com relação aos EUA e ao Reino Unido entre 1913 e 1928-29, mas apenas ligeiramente; só depois de 1930 ocorreram reduções expressivas nessas proporções.” (Gustavo H. B. Franco e Luiz Aranha Correa do Lago, A Economia da República velha, 1889-1930)" 

Felipe Augusto Machado, "Por que abandonamos a mentalidade que nos desenvolvia?" (extrato publicado no site do Paulo Gala): https://rib.ind.br/debate-com-samuel-pessoa-texto-6-por-que-abandonamos-a-mentalidade-que-nos-desenvolvia/














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20 julho 2022

As revistas do modernismo: digitalizadas e online


Seis revistas fundamentais da primeira fase do movimento modernista no Brasil, marcada pela Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922, estão sendo documentadas e indexadas de maneira inédita e inovadora em um trabalho de pesquisa que produz dados analíticos e documentais capazes de ampliar o conhecimento dessas publicações, do papel de seus principais colaboradores e das repercussões que tiveram ao longo da história.

As revistas Klaxon (SP, 1922-23), Estética (RJ, 1924-25), A Revista (Belo Horizonte, 1925-26), Terra Roxa e Outras Terras (SP, 1926), Verde (Cataguases, 1927-29) e Revista de Antropofagia (SP, 1928-29) são as primeiras publicações brasileiras a integrarem a plataforma, iniciativa mantida como uma atividade científica do Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O Portal Revistas de Ideias e Cultura não se limita a realizar a digitalização dos periódicos, e faz uma indexação minuciosa de cada um dos textos publicados, identificando conceitos, assuntos, autores, obras, lugares citados, o que torna mais ágil o levantamento de informações e a produção de dados numéricos para os interessados na temática. Cada periódico também é acompanhado de um “magasin”, indexador de fontes que ajuda na contextualização da revista em questão.

A iniciativa é liderada por docente da Unesp, em parceria com universidade portuguesa e a BBM-USP, expande possibilidades de análises e releituras desses periódicos clássicos.

Leia a matéria completa de Fabio Mazzitelli para o Jornal da Unesp














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13 fevereiro 2022

A ascensão dos nazistas ("Rise of the Nazis")


Minissérie histórica da BBC 





Ascensão dos Nazistas (em inglês, Rise of the Nazis) conta, em três episódios, como Adolf Hitler e seu Partido Nazista chegaram ao poder na Alemanha no começo da década de 1930.

As consequências disso seriam trágicas para a humanidade.

Este primeiro episódio nos leva aos corredores do poder, onde um mestre da política alemã vê uma oportunidade de usar a repentina popularidade dos nazistas para benefício próprio.

Isso leva a uma rede de erros de cálculo, acordos duvidosos e tomadas de poder que irão tirar Hitler das franjas do ativismo político e alçá-lo ao coração do governo.

Hitler quer se tornar o líder absoluto de um regime de partido único na Alemanha – mas, em seu caminho, estão a democracia e as leis.

Depois de um golpe malsucedido em 1923, Hitler adota outra estratégia: em vez de agirem como revolucionários, os nazistas se tornarão um partido político legítimo, operando sob a aparência de legalidade.

O objetivo dele é conquistar o poder democraticamente e então destruir a democracia por dentro. 

Para atingir essa meta, Hitler precisa superar a elite política da Alemanha, incluindo o presidente Paul von Hindenburg, que o menospreza, e, internamente, Kurt von Schleicher, que quer usá-lo.

Enquanto suas intrigas políticas se desenrolam no nível mais alto do governo, Hitler enfrenta outro obstáculo: o advogado judeu Hans Litten, que tenta provar que os nazistas estão longe de ser o partido legal e legítimo que eles clamam ser.



Episódio 2




Episódio 3





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26 novembro 2021

"Não há questão mais promissora ou importante para a essência da pesquisa científica do que entender como as mentes humanas resolvem problemas e tomam decisões com eficácia." (Herbert Simon)


“O Plano Marshall se tornou uma analogia favorita dos formuladores de políticas públicas. No entanto, poucos sabem o suficiente sobre ele." 
(Graham T. Allison ).



Este Texto para Discussão (em versão preliminar, mas já submetida e aprovada por dois pareceristas) discute como o apoio à decisão pode contribuir para que a formulação de políticas públicas alcance maior grau de consistência e coerência.

Espera-se que isso favoreça o desenho de programas governamentais mais eficientes, com menor fragmentação e sobreposição, e mais efetivos. 

Para investigar essas questões em detalhe, a análise reconstitui o "making of" do Plano Marshall, aquele que é considerado o plano de maior envergadura e complexidade desenvolvido desde o século XX.

Leia (arquivo pdf).


Ilustração: cartaz propagandístico, em alemão, com a promessa de "caminho aberto".

Mais sobre o Plano Marshall e o o Programa de Recuperação Europeia (European Recovery Program – ERP):
LASSANCE, Antonio. O Plano Marshall: uma abordagem atual à formulação, ao desenho e à coordenação de políticas públicas e programas governamentais. Brasília: Ipea, 2021. (Texto para Discussão, n. 2661). Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2661substituicao2_o%20plano%20marshall.pdf 
JEL: H11; D4; B15.




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31 agosto 2021

O mito da facada: uma velha história



"A ideia de que uma guerra - ou uma eleição - não foi realmente perdida, mas traída por uma conspiração de bastidores é uma forma fácil e perenemente atraente (para algumas pessoas pelo menos) de explicar a derrota: derrota, afinal, é muito difícil e doloroso de se admitir. 

Também desqualifica uma grande parte da sociedade como se ela não pertencesse à nação, sejam os judeus ou os socialistas na Alemanha, em 1918, ou os Democratas na eleição dos Estados Unidos em 2020."


A frase acima é do renomado historiador Richard J. Evans, em entrevista.

Célebre especialista em Hitler e no nazismo, seu trabalho mais recente se chama “As conspirações de Hitler: A facada nas costas - O incêndio do Reichstag - Rudolf Hess - A fuga do Bunker”.

O livro trata das teorias da conspiração e fake news geradas em profusão pelo nazismo. 

A frase dita acima por Evans foi a resposta à pergunta do jornalista Aaron J. Leonard:

"Seu capítulo detalhando o mito da "facada nas costas", que afirma que o exército alemão foi sabotado da vitória na Primeira Guerra Mundial por várias forças de esquerda antipatrióticas, me fez pensar em um veterano do Vietnã que encontrei há alguns anos e que era taxativo de que, naquela guerra, os EUA foram forçados a lutar com 'uma mão amarrada nas costas'. Parece que uma das características de muitas dessas teorias da conspiração ou 'histórias alternativas', é pegar uma perda ou fraqueza e transformá-la em algo mais rasteiro. Isso é correto ou há algo mais acontecendo?"













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01 agosto 2021

HISTÓRIA DE QUEM FEZ HISTÓRIA

Memória do movimento estudantil de história, dos anos 1980 até hoje.






Debate organizado pela Federação do Movimento Estudantil de História.









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29 julho 2021

METODOLOGIA DA PESQUISA: Historia Serial e Micro História

Antonio Lassance, do IPEA, fala sobre o assunto em entrevista ao professor Carlos Domínguez, no programa Crítica Republicana (26/7/2021).






O livro a que fiz referência, sobre a resistência dos negros e os assassinatos seletivos perpetrados por supremacistas brancos contra as lideranças emergentes do período pós escravidão, é: 
EGERTON, Douglas R. The Wars of Reconstruction: The Brief, Violent History of America’s Most Progressive Era. Bloomsbury Press, 2014
 
Além disso, são citados: 
LASSANCE, Antonio. O Plano Marshall: uma abordagem atual à formulação, ao desenho e à coordenação de políticas públicas e programas governamentais. Brasília: Ipea, 2021. (Texto para Discussão, n. 2661). Disponível em <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2661substituicao2_o%20plano%20marshall.pdf>
JEL: H11; D4; B15.
DOI: http://dx.doi.org/10.38116/td2661 
 
LASSANCE, Antonio. Revolução nas políticas públicas: a institucionalização das mudanças na economia, de 1930 a 1945. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,  v. 33, n. 71, p. 511-538, jul. 2020. ISSN 2178-1494. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/eh/v33n71/2178-1494-eh-33-71-511.pdf>; <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/81468/78255>. Acesso em: 05 Set. 2020.

 
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18 junho 2021

O que o maior plano de recuperação econômica mundial tem de atual e útil?


O Plano Marshall foi uma experiência de grande envergadura que ainda traz à luz problemas típicos cruciais com os quais pessoas encarregadas de desenvolver políticas públicas e programas governamentais (policy makers) se defrontam rotineiramente, entre eles:

• Como definir e persistir em uma estratégia de longo prazo diante de questões urgentes de curto prazo, em contextos de crise e pressão política? 
• Como é possível aprovar planos ambiciosos em situações de minoria congressual? 
• Como pensar objetivos estratégicos comuns para realidades socioeconômicas e político-institucionais tão assimétricas (como é comum entre países ou até dentro de um mesmo país, entre regiões bastante diversas)? 
• Como atender à fiscalização congressual e de órgãos de controle e ao mesmo tempo garantir agilidade na implementação? 
• De que forma uma política pública e os programas a ela associados se complementam e não se fragmentam nem se contradizem? 
• Como combinar governança hierarquizada com autonomia gerencial?



Leia o texto (arquivo pdf).

LASSANCE, Antonio. O Plano Marshall: uma abordagem atual à formulação, ao desenho e à coordenação de políticas públicas e programas governamentais. Brasília: Ipea, 2021. (Texto para Discussão, n. 2661). Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2661.pdf


LASSANCE, Antonio. The Marshall Plan: a current approach to the formulation, design and coordination of public policies and government programs.
This working paper investigates the Marshall Plan from an unprecedented angle: that of strategy formulation, policy design, and the coordination of policy implementation. Through an in-depth case study, the Marshall Plan proves to be a far-reaching experience that still brings to light chronic and crucial problems for those interested in ex ante policy analysis. The conclusion is that the plan can be reinterpreted as an approach to complex and multi-causal problems (wicked problems) in search of building integrated solutions and government action as coordinated as possible. The approach consists of striving for strategic definitions centered on the correct choice of priority problems and the identification of their causal chain. Around these definitions, the policy design seeks to balance short-term responses with attention to long-term causes. Such assumptions precede issues such as, for example, the efficient budget allocation and the optimization of administrative and regulatory resources – concerns which are more focused on consequences than on root causes. With these preliminaries guaranteed, the policy design establishes a policy governance with due command and central control over the strategy, but with managerial autonomy over the programs. It leaves an open part of the process of formulating alternatives so that they adjust to a decentralized and capillarized implementation, with a technical cooperation network that remains close to the street-level bureaucracy.

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2661.pdf





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24 maio 2021

Como uma viagem de ácido pela Califórnia tornou Michel Foucault um neoliberal



O tratamento dado ao neoliberalismo por Foucault (além de sua reportagem estranhamente entusiástica sobre a Revolução Iraniana) "revela a pobreza em alguns temas-chave" de seu legado.
Ele falhou em prever como uma filosofia da "autonomia" pôde criar uma cultura do privilégio disfarçada de meritocracia. 

O livro que conta essa história é "The Last Man Takes LSD: Foucault and the End of Revolution
("O Último Homem Toma LSD: Foucault e o Fim da Revolução"), de Mitchell Dean e Daniel Zamora
Editora Verso, 256 páginas, US$ 27

Jonathan Russell Clark para o Los Angeles Times.
24 de maio de 2021.

Em 1978 e 1979, o filósofo francês Michel Foucault deu uma série de palestras sobre o neoliberalismo, o conjunto de doutrinas econômicas voltadas para o livre mercado, pró-empresarial, redução do tamanho do Estado e autonomia individual. Foucault não estava interessado nos detalhes do governo real. "Não estudei e não quero estudar", anunciou na primeira palestra, "o desenvolvimento de uma prática governamental real". Em vez disso, ele estava interessado na "arte do governo".

Um livro baseado nessas palestras, "The Birth of Biopolitics", não seria publicado em inglês até 2008, bem no meio de uma crise financeira histórica claramente causada pelo neoliberalismo. Foi, para seu legado, um momento infeliz. O flerte de Foucault com a ideologia dominante desafiou sua reputação acadêmica incólume, e vários artigos tentaram defendê-lo contra sua própria transformação tardia. Mas as consequências foram claras, independentemente do pequeno papel que desempenhou: não muito depois de suas palestras, Thatcher e Reagan deram a largada no neoliberalismo pelo mundo, e estamos revirando escombros até hoje.

Tudo remonta, estranhamente, a uma visita que o pensador francês fez à esquerdista Califórnia - e a uma viagem que fez assim que chegou lá. 

O novo livro de Mitchell Dean e Daniel Zamora, "The Last Man Takes LSD", enfoca a década final de Foucault, de 1975, quando ele tomou o alucinógeno na Califórnia pela primeira vez, até sua morte, em 1984, por complicações da AIDS. 

Durante este período, Foucault mudou de lado na política, da esquerda, desde os anos 60, para uma posição mais centrista, uma tendência dificilmente rara para sua geração durante a Guerra Fria. Como Dean e Zamora colocaram, "Foucault e muitos outros intelectuais pós-68 participaram do processo de pensar sobre uma esquerda que não era socialista; uma esquerda que eliminaria o legado do socialismo pós-guerra."

Nessa visão, um governo com muito poder sobre seus cidadãos invariavelmente levaria ao totalitarismo. O socialismo era visto como "cripto-totalitário". Para Foucault, tais regimes não apenas controlavam sua população, eles os definiam. 

Assim como ele defendeu, perante Roland Barthes, que a interpretação dos textos é a "morte do autor", Foucault queria destituir o Estado de seu poder de determinar o significado de seus cidadãos. Era necessária uma nova concepção radical da individualidade, que substituísse as ideias anteriores de resistência política. Inventar a si próprio foi, para Foucault, a nova forma de revolução.

Ironicamente, foi a experiência de Foucault com LSD em Zabriskie Point no Vale da Morte, um local bem conhecido por suas associações com a  contracultura (principalmente, pelo filme de Michelangelo Antonioni de 1970, "Zabriskie Point") que o encaminhou para a direita. 

A Califórnia nos anos 1960 e 1970 foi um viveiro de ativismo esquerdista - dos protestos de Berkeley aos Merry Pranksters e os Panteras Negras. Foucault, por outro lado, descobriu um tipo diferente de radicalismo. Sua viagem de LSD reforçou sua oposição à "hermenêutica de si", ou seja, interpretar a si como se houvesse alguma verdade fundamental e fixa de sua identidade.

Em vez disso, Foucault acreditou na noção de “prova” - provação -, uma técnica que criaria a verdade interior, em vez de desnudá-la. A identidade de uma pessoa, segundo Foucault, deve ser construída por meio de julgamentos pessoais não contaminados por interferências externas, incluindo - e  principalmente - a de um Estado. 

Foucault mergulhou fundo no coração do individualismo americano e do anti-establishment, mas suas realizações subsequentes mostraram o quão tênue é a linha entre a autossuficiência e o egoísmo.

O neoliberalismo rapidamente se transformou de um conjunto de práticas econômicas que promoveriam a liberdade individual no que o escritor George Monbiot descreveu como “um tipo de extorção self-service”, enriquecendo os ricos e institucionalizando a desigualdade sistêmica. 

Já na década de 70, escrevem Dean e Zamora, o neoliberalismo "foi revelado não apenas como totalmente compatível com regimes autoritários e ditatoriais, em vários países, mas, em muitos casos, como um de seus requisitos". 

O que começou como uma reação ao socialismo “cripto-totalitário” se transformou exatamente no tipo de ideologia restritiva que afirmava combater. Friedrich Hayek, o autor do discurso proto-neoliberal "The Road to Serfdom" ("O Caminho da Servidão"), afirmou certa vez em uma entrevista que preferia um "ditador liberal" a uma "democracia sem liberalismo".

Para os autores, o tratamento dado ao neoliberalismo por Foucault (além de sua reportagem estranhamente entusiástica sobre a Revolução Iraniana) “revela a pobreza em alguns temas-chave” de seu legado. 

Em primeiro lugar, "a abordagem de Foucault parece ter comprometido sua capacidade de abordar a questão da desigualdade." Em segundo lugar, ele falhou em prever como uma filosofia da “autonomia” pôde criar uma cultura do privilégio disfarçada de meritocracia. 

A competição econômica sugere que vencedores e perdedores merecem estar nos lugares onde estão. Na retórica de Newt Gingrich e Bill Clinton nos anos 90, os cidadãos de baixa renda precisavam apenas assumir "responsabilidade pessoal", enquanto o governo se afastava de suas obrigações cívicas.

“The Last Man Takes LSD” não é tão narrativo quanto seu título e premissa podem sugerir - isso não é “Medo e aversão na pós-modernidade”*. Mas Dean, um professor de política, e Zamora, co-autor de “Foucault e o Neoliberalismo”, fazem um excelente trabalho contextualizando as pesquisas e ideias de Foucault em seus anos finais. 

Eles traçam metodicamente as nuances do clima político espinhoso da Era, criando um retrato da promoção simpático de Foucault em uma virada filosófica prejudicial a um pensador que explorou com sucesso o poder e a exploração - uma virada filosófica autodestrutiva. 

Os autores não são tímidos, entretanto, em condenar suas deficiências intelectuais durante esse período. As práticas que ele exaltou em suas palestras, concluem Dean e Zamora, “contribuíram para aumentar a desigualdade, as políticas ditas de austeridade e de controle da dívida pública, mas que aceleraram a corrosão dos serviços públicos, a destruição de empregos públicos e minaram a confiança no Estado, a tal ponto que reduziu a capacidade das democracias reais existentes de resolver problemas da economia, da saúde, segurança e meio ambiente que os confrontam. ”

Mesmo que a viagem de LSD de Foucault não tenha sido a única causa de suas tendências neoliberalistas, ela serve como um simbolismo útil. Os psicodélicos podem promover revelações que expandem a mente, mas implementar novas políticas governamentais requer muito mais do que considerações abstratas. 

Foucault era conhecido por seu envolvimento com o ativismo político (descrito por Colin Gordon como um “homem de ação em um mundo de pensamento”), mas sua miopia tardia reside em sua falta de vontade de explorar suas consequências práticas. Uma ideia que nutre a mente ainda pode destruir o corpo ou corromper a alma. O problema com a ideia de neoliberalismo é que ela soava muito bem em teoria.



* A expressão "fear and loathing" ("medo e aversão") se refere a um estilo editorial de livros muito vendidos que começam justamente com essas palavras e a elas se acrescenta o tema que será tratado no livro.

A foto que estampa esta postagem retrata Michel Foucault e o pianista Michael Stoneman justamente no Vale da Morte, Califórnia, em junho de 1975. Tirada pelo fotógrafo David Wade.

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02 maio 2021

"O mundo é o que se vê de onde se está"

O geógrafo Milton Santos dizia que "descolonizar é olhar o mundo com os próprios olhos." 

Por isso, para ele, "o mundo é o que se vê de onde se está". 





Ele foi um dos primeiros a entender a globalização como um fenômeno histórico que tinha suas origens desde as grandes navegações que levaram, em 1492, à chegada definitiva dos europeus ao território que se tornaria conhecido como América. 

"O olhar sobre a primeira globalização vem das viagens de descobrimento e conquista". 









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21 fevereiro 2021

​Manifesto por um diálogo "historicamente correto"

Precisamos tratar as palavras para além da gramática e, antes da política, entendê-las pela história.


"Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar".
(​Lô Borges e Ronaldo Bastos​, ​O Trem Azul​).

"Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos." 
(Carlos Drummond de Andrade, A flor e a náusea).

Atenção!
O cerne deste manifesto é o de que precisamos tratar as palavras para além da gramática e, antes da política, entendê-las pela história.
A ideia meio irônica do "historicamente correto" é esta mesma: uma mera provocação para chamar a atenção para algo mais importante do que a busca por nomes de fantasia.
Na linha do que defendia a grande historiadora Emília Viotti da Costa, "o trabalho do historiador é sempre um diálogo entre o passado e o presente". Na análise sintática deste manifesto, o que sustenta "passado" e "presente" é a palavra-chave "diálogo".

Pessoas aprisionadas e submetidas a trabalho forçado
Tem ganhado espaço a treta de recriminar pessoas que usam a palavra "escravo", ao invés de "povos escravizados". Mesmo que se argumente que um povo escravizado se torna, obviamente, escravo. 
No final das contas, as expressões se equivalem, mas diz-se que a expressão "escravo" seria racista por não deixar claro que essas pessoas foram levadas a tal condição de forma violenta.
Em tempos de extrema direita rampante, de fato faz sentido explicar, mesmo que seja óbvio ululante, que ninguém torna-se escravo voluntariamente. Escravo não é carreira nem vocação, embora a extrema-direita e seu libertarianismo insistam que tudo na vida se resume a escolhas pessoais. Bem ao contrário, as pessoas são forçadas a tal condição e violentadas sistematicamente. Grilhões nunca foram adereços ou bijuterias. Ser chicoteado, naquela circunstância, não era fetiche.
Só que a troca de "escravo" por "povo escravizado", solução importada dos Estados Unidos na década passada (a moda até que demorou a chegar por aqui), arranha, mas não resolve o problema, por uma razão igualmente óbvia.
O vocábulo "escravo" descende etimologicamente da palavra "eslavo". "Eslavo", assim como "índio", foi uma denominação antiga e genérica sobre povos bastante diversos, como russos, ucranianos, tchecos, cazaques, turcomenos, sérvios, croatas, bósnios, búlgaros, entre outros.
Trocar "escravo" (literalmente, "eslavo") por "escravizado" (ao pé da letra, "eslavizado") é pouco além de eufemismo. A raiz do problema continua lá. Os eslavos, assim estigmatizados, continuam agrilhoados à raiz da palavra. Se falar "escravo" é racista, se deveria morder a língua ao falar, desavisadamente, em "povo eslavizado".
Se quisermos mesmo temperar nosso discurso com algum radicalismo (e tomo aqui a palavra em seu melhor sentido), seria bom pelo menos sabermos lidar com os radicais dos vocábulos, antes de simplesmente cancelá-los. 
A dica é que os debates sobre escravismo, escravidão e escravização discutam a historicidade do termo, expondo os processos que engendraram o aprisionamento de pessoas submetidas ao trabalho forçado e vendidas no mercado - pronto! Eis o nome e sobrenome da coisa, se quisermos mesmo exorcizar uma palavra impregnada por uma longa trajetória e que merece um tratamento mais criterioso.

Os pioneiros
Quando fiz minha graduação em história, nos anos 1980, já havia caído em desuso chamar alguns povos de "primitivos". Era considerado preconceituoso, depreciativo, estereotipado. Veio naquela época a ideia de trocar essa expressão pela de "povos originários".
Eu tinha uma sensação dúbia em relação a isso. Confesso que nutria uma certa afeição pela palavra "primitivo" tanto pela arte primitivista quanto pela expressão "comunismo primitivo", que Marx e Engels usaram para qualificar povos que viviam sem propriedade privada, sem Estado e tendo sua sobrevivência garantida pela caça e coleta.
Passei a questionar por que do cancelamento de uma expressão que, literalmente, queria dizer, pura e simplesmente, "aqueles que vieram primeiro". Eram os que viveram o que não vivemos; que estavam quando não estávamos. Eram e são nossos ancestrais, nossos parentes, nossos "primos".
Os arqueólogos mostraram que nossos povos estavam mais para primitivos do que para originários. Eles eram descendentes daqueles que foram os primeiros a aqui chegar, mas originários de outros lugares.
Podemos nos referir a eles como "os primeiros povos que por aqui chegaram" ou, simplesmente, "os pioneiros". É algo totalmente autoexplicativo e incapaz de ofender alguém -  pelo menos, por enquanto. Mas podemos também enfrentar um debate em torno do que se entende por "primitivo". É um bom teste para verificar com que gramática algumas pessoas raciocinam.

Silvícola
Ainda nos anos 1980, apareceu uma conversa de que não podíamos chamar ninguém de selvagem. Era um cuidado providencial para com uma expressão carregada.
Todavia, selvagem quer dizer quem vive na selva, quem tira da selva seu sustento, quem da selva faz seu meio de vida. Um eremita é um selvagem. Um Yanomami, idem. A selva é tudo. Sua vida e sua morte. Nisso não existe demérito. 
"Silvícola", uma palavra que caiu em desuso, por alguma razão misteriosa, fazia essa distinção de forma ainda mais patente. 
De todo modo, quando li Rousseau e sua tese ou mito (me desculpem pela palavra tão deturpada ultimamente, mas que haveremos de resgatar) do bom selvagem, encontrei uma bela defesa de que nem selva nem selvagem eram um problema. 
A oposição entre "selvageria" versus civilização caía por terra, graças a um filósofo de peso. Ficava cada vez mais evidente que não havia nada mais predatório do que aquele tipo de civilização que fez Rousseau abrir os olhos, dele e os nossos. Como diziam os Paralamas do Sucesso, justamente na música "Selvagem", "o espanto está nos olhos de quem vê o grande monstro a se criar".
Minha fase rousseauniana não durou muito, mas decantei a ideia de que "selvagem" e "civilizado" não querem dizer, necessariamente, algo bom ou ruim. Viver na selva e da selva não diz nem se você é um Kaingang nem se é o Anhanguera ("diabo velho"), o predador que também se aculturou dos hábitos selvagens (de como viver na selva, da selva e dos povos que lá estavam) para melhor explorar e dizimar todos os que apareciam à sua frente.

Esses povos têm nome
Os índios das Américas ganharam esse apelido meio que por engano, desde quando espanhóis e portugueses aportaram por estas bandas achando que estavam alcançando a costa Oeste da Índia. Esse oeste dos navegadores tinha como referência seu próprio continente. A tal Índia que encontraram, por malandragem do genovês Cristovam Colombo, tornou-se "Ocidental", em distinção a uma Índia dita "Oriental".
Mesmo depois que Américo Vespúcio deu um freio de arrumação e emprestou ao Continente o nome de América, os povos que vieram antes de nós ainda seguiram sendo apelidados de "índios". 
No século XX, adotou-se um complemento redentor e ficou mais comum se ouvir falar de "povos indígenas". O acréscimo do "povos" manteve o péssimo hábito de tratá-los todos como de um mesmo saco de batatas, desobrigando-nos de chamar cada qual pelo seu devido nome. "Indígena" quer dizer simplesmente "nativo". Não designa especificamente ninguém. 
Qual a dificuldade de aprendermos a nominar esses povos como Yanomami, Camaiurá, Mundurucu, Terena, Juruna, Pataxó, Tabajara, Aimoré e Potiguara, Tupinambá, Caeté, Mbayá - conhecidos no Brasil como Guaicuru -, Caiapó e Avá-Canoeiro? Ainda é menos do que os nomes de times de futebol que a maioria é capaz de decorar. 
Vale lembrar que o nome Guaicuru, assim como dos antigos Tapuia, tinha sentido pejorativo - na origem - dado por povos que a eles eram rivais.

Mestiço
Em algum lugar do passado, surgiu a lenda urbana de que a palavra "mulato" era preconceituosa porque viria de "mula". 
Etimologicamente, o parente mais próximo da palavra "mulato" é "muwallad", que vem do árabe. Tanto espanhóis e catalães quanto portugueses usavam expressões como "muladí", "muladita" e "muladi", tiradas de "muwallad". Isso muito antes de se colonizar as Américas. Uma pessoa "muwallad" era um mestiço de árabe com não árabe. Aliás, antes mesmo de os árabes ("mouros") conquistarem a Península Ibérica, mulatos e mulatas ("muwallads") eram mestiços de árabe com ​​africana​/​​africano​.
Por sua vez, o latim "mulus", embora pareça assemelhado a mulato (como alvará, que é árabe, é assemelhado a Álvaro, que é germânico, e não têm qualquer relação entre si), não explica por que alguém transformaria "mulus" em mulato, e não em mulo e mula, simplesmente. Como se sabe, gente preconceituosa não se dá ao trabalho de colocar penduricalhos em palavras prontas que se prestem a xingamentos.
Darcy Ribeiro, no livro "O Povo Brasileiro", considerava os mulatos (exatamente assim denominados por nosso grande antropólogo) como um povo essencialmente brasileiro, desde o período colonial, na medida em que não eram mais nem portugueses nem africanos, mas mestiços nativos. Mas "O Povo Brasileiro" é um clássico cada vez menos lido.
Outro clássico, a música "Tropicália", de Caetano Veloso, chegou a ser cancelado por um bloco de carnaval por ter um verso que se referia aos "olhos verdes da mulata". Caetano invocou lugar de fala ao se reivindicar mulato e filho de mulato, mas nada disso funcionou muito para lhe conferir salvo-conduto.
"Mulato" acabou até mesmo oficialmente substituído pela denominação "pardo". Pelo menos em termos demográficos e por convenção do IBGE, a população negra é composta por pretos e pardos. Mas foi Pero Vaz de Caminha, em 1500, que pela primeira vez usou a expressão "pardo" por estas terras, ao dizer, sobre os Tupiniquim, que "a feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos."

Iluminar
Acredite se quiser, pessoas que fazem uso do verbo "esclarecer" já foram repreendidas por ser essa, supostamente, uma expressão racista. Para livrar-se da pecha, elas são orientadas a substituir esse verbo por "escurecer". Isso mesmo. Vamos, a partir de agora, "escurecer um assunto", "escurecer uma dúvida".
A noção de "esclarecimento" é uma das mais antigas da filosofia e da educação. Ela tem relação direta com o mito da caverna de Platão. O conceito vem de uma história: a de tirar pessoas de uma caverna e trazê-las ao sol para que consigam ver algo mais do que apenas vultos.
Toda a tradição ​"​iluminista​"​ retomou a ideia de esclarecimento e fez oposição à fase apelidada de Idade das Trevas. A Idade Média ganhou esta má fama de forma igualmente injusta, mas a oposição histórica e filosófica entre luz e trevas, neste caso específico, está longe de qualquer embate de cunho racial.
Portanto, antes que você peça desculpas por "esclarecer" algo e caia na tentação de "escurecer" uma ideia, prefira iluminar ou explique, de uma vez por todas, o mito da caverna.

Bárbaros e Bárbaras
Uma das palavras mais antigas a destilar preconceitos foi "bárbaro". Em grego, "bárbaro" vem de balbuciar, gaguejar. Ao que tudo indica, surgiu de uma onomatopeia de sílabas repetidas ("bar-bar-ro").
O bárbaro era o estrangeiro que, ao não ter fluência e tropeçar na língua grega, confessava sua origem "estranha" (aliás, vem daí a palavra "estrangeiro"). 
Com o tempo, o jogo virou. Bárbaro tornou-se adjetivo elogioso, com o sentido de estupendo, extraordinário. Daí passou ​até ​a figurar em nomes​ próprios​​. As Bárbara​s estão aí para comprovar​.

Adjetivos ou diálogo?
Nem tudo que é dito e tido como errado merece, simplesmente,  cancelamento. Carece, antes, de uma explicação, de uma boa história​. Do contrário, nem crítica é. Vira um jogo de convenções e desinformação. Uma espécie de terraplanismo linguístico. 
O maior risco é o de se construir novos mitos, urbanos ou dourados, que supostamente espantam qualquer maldade ou opressão. Uma espécie de espantalho ou pó de pirlimpimpim. Longe de resolver um problema, parece uma tentativa de ​​varrer para debaixo do tapete uma parte da trajetória humana que está impregnada de preconceitos que precisam ser expostos e enfrentados, e não esquecidos.
Nos anos 1980, Terry Eagleton, em suas críticas demolidoras ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, os acusava de escamotear um debate que deveria ir além da semântica e da semiótica. Para Eagleton, essa geração, incapaz de mexer com estruturas do poder, achou melhor "subverter as estruturas da linguagem". 
Na década seguinte, o caldo já havia entornado por completo e ganhado uma versão mais popular, ironicamente apelidada de "politicamente correto". O sociólogo marxista jamaicano Stuart Hall, em um ensaio de 1994, alertava sobre as origens, virtudes e vícios de um movimento que ganhou força em meio a temáticas essenciais. 
A tomada de consciência pessoal e o debate identitário podiam dar ainda mais concretude à compreensão das relações de classe, mas Hall apontava para os riscos de uma captura do que, antes, havia de arejado e inovador nessa tomada de consciência. 
Uma outra face começou a capturar esse debate. Travestido de vanguardismo, imperava um moralismo rasteiro. De quebra, um anti-intelectualismo de bolso servia de pretexto para brandir desinformação.
De uma boa provocação ao debate, chegava-se ao ponto de se ver posturas do tipo "eu não quero aprender nada vindo de você". Ao invés de mentes abertas, portas fechadas. 
Dispensando a necessidade de recorrermos a qualquer neologismo, o nome disso é "chauvinismo" ou, quem sabe, "neochauvinismo", para refrescar uma palavra hoje não tão badalada quanto no século XIX.
Nicolas Chauvin foi soldado do exército napoleônico. Sequelado e indignado, ganhou fama como símbolo de uma França sofrida, mutilada, de joelhos, derrotada, humilhada, oprimida, mas que respondia a essa condição de modo inconformado, o que é bom, mas com discurso de ódio e hostilidade a qualquer outro ponto de vista que não fosse francês, o que é extremismo tosco. Além de xenófobo (o medo a quem é "estranho"), Chauvin era um lacrador. Sua lacração o transformou em adjetivo - "chauvinista". 
Não se deve usar politicamente qualquer termo de forma desavisada e nem enviesada, tóxica. O antídoto é explicar a história que forjou aquela palavra, desde sua origem, e a trouxe hoje naquele estado, às vezes, lastimável. É uma pena que nem sempre alguns tenham a chance ou que muitos nem se deem ao trabalho de explicar e historiar o que falam e escrevem. 
Tenhamos a devida paciência e atenção para ouvir e aprender com quem tem de fato algo novo a falar, e também com a legião de lacradores que se candidatam diariamente a virar verbete de dicionário, na classe dos adjetivos. 
Afinal, essas pessoas estão em nossas salas de aula, no ônibus, nas mídias; são parentes, amigos, celebridades ou pessoas que mal conhecemos. Em todos os casos, existe alguma razão digna de respeito até mesmo para que estejam tão convictamente equivocadas. Precisamos entender… para explicar.


* Antonio Lassance é historiador, mestre e doutor em ciência política.
















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19 novembro 2020

Como uma ditadura machista, racista e organizada em milícias ganhou apoio popular e esmagou sua oposição?

Tudo o que você queria saber sobre vida na Alemanha nazista.

Como era a vida das mulheres e crianças na Alemanha nazista? Como os judeus e outras minorias foram perseguidos? E quanto as pessoas de fato sabiam sobre os horrores do regime nazista? Quem explica é o historiador Richard J. Evans, referência mundial em estudos sobre a Alemanha nazista e professor emérito de história da Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Ouça a entrevista (em inglês):





Life in Nazi Germany: everything you wanted to know
What was life like for women and children in Nazi Germany? How were Jewish people and other minorities persecuted? And how much did ordinary citizens know about the horrors of the Nazi regime? We found out from Richard J Evans, a leading historian of Nazi Germany and regius professor emeritus of history at the University of Cambridge

Read the full interview.






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05 setembro 2020

Revolução nas políticas públicas

Artigo analisa um dos principais legados da Revolução de 1930: as mudanças na economia, rumo à industrialização, sob a presidência de Getúlio Vargas.



Leia (arquivo em pdf) o artigo publicado pela Revista Estudos Históricos, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), considerada a melhor revista de história do país e uma das mais bem conceituadas no mundo.

Para citar este artigo (formato ABNT):
LASSANCE, Antonio. Revolução nas políticas públicas: a institucionalização das mudanças na economia, de 1930 a 1945. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,  v. 33, n. 71, p. 511-538, jul. 2020. ISSN 2178-1494. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/eh/v33n71/2178-1494-eh-33-71-511.pdf>; <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/81468/78255>. Acesso em: 05 Set. 2020.

Formato APA:
Lassance, A. (2020). Revolução nas políticas públicas: a institucionalização das mudanças na economia, de 1930 a 1945. Revista Estudos Históricos, 33(71), 511-538. Recuperado de http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/81468/78255


Resumo:

O artigo analisa os legados da Revolução de 1930 por um novo ângulo: o das políticas públicas. Para tanto, estabelece um recorte sobre as políticas econômicas lançadas desde 1930, evidenciando o fio de Ariadne dessas transformações. A metodologia combina, de forma inédita, história serial e análise com foco em políticas públicas, tendo como fonte básica os decretos presidenciais, buscando impressões digitais do presidente nessas mudanças. Conclui-se que mudanças mais significativas só ganharam impulso na virada para os anos 1940, a ponto não só de reorientar a política econômica, mas de se criar uma nova economia política.












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05 agosto 2020

História do Brasil: por onde começar?




Um roteiro com sugestões de grandes questões, livros e filmes sobre o Brasil e a história de seu povo.

Abra a apresentação online em slides.

Baixe o arquivo em pdf.














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07 maio 2020

Corsários: uma parceria público-privada das mais antigas




Quando empreendedores aventureiros e Estados nacionais se aliaram para saquear, dominar, aprisionar e matar.

"O corso (a pirataria autorizada e às vezes financiada por reis e rainhas) ganhou força no século XVI, segundo o historiador Jean Marcel Carvalho França, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Franca. 

As frotas de Espanha e Portugal eram atacadas com frequência, resultando em perdas imensas de ouro, pau-brasil e marfim. Mesmo que não tenham conseguido se fixar no Brasil, franceses e ingleses formaram colônias nas Américas Central e do Norte. 

Mais do que uma simples aventura, esse tipo de invasão representava uma contestação do governo inglês à divisão das terras do Novo Mundo entre Espanha e Portugal, formalizada por meio do Tratado de Tordesilhas em 1494.

Veja no vídeo produzido pela equipe de Pesquisa FAPESP como reinos europeus apoiavam os ataques de corsários à costa brasileira." (Pesquisa FAPESP).

Jean Marcel Carvalho França fala também do quanto é importante escrever para o grande púbico, ou seja, um público que vá além do circuito restrito de historiadores, sem perder o rigor da pesquisa e da escrita. 

Afinal, o objetivo dos historiadores é "formar perspectivas coletivas sobre o passado", e para isso é preciso ter leitores. 









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O Capitalismo Americano: novas histórias

Beckert, Sven and Christine Desan, eds. American Capitalism: New Histories. Columbia Studies in the History of U.S. Capitalism. New York: Columbia University Press, 2018.


Os Estados Unidos há muito tempo simbolizam o capitalismo. Desde seus lojistas empreendedores, bancos selvagens, violentas plantações escravistas, gigantesca classe trabalhadora industrial e estridente comércio de mercadorias, até suas multinacionais de abrangência mundial, suas enormes fábricas e o poder centrípeto de Nova York no mundo das finanças, a América passou a simbolizar capitalismo por dois séculos e mais. 

Mas a compreensão sobre o que é a história do capitalismo americano é tão ilusória quanto urgente. O que significa fazer do capitalismo um objeto de investigação histórica? Qual é o seu potencial em várias disciplinas, juntamente com diferentes metodologias e em uma variedade de configurações geográficas e cronológicas? E como o foco no capitalismo muda nossa compreensão da história americana?

O Capitalismo Americano apresenta uma seleção de pesquisas de ponta de estudiosos proeminentes. Esses ensaios, feitos de mente aberta e de forma rigorosa, arriscam novos ângulos em finanças, dívida e crédito; direitos das mulheres; escravidão e economia política; racialização do capitalismo; trabalho além dos assalariados industriais; e produção de conhecimento, incluindo a ideia em si de economia, entre outros tópicos. 

Juntos, os ensaios sugerem temas emergentes nesse campo de pesquisa: um fascínio pelo capitalismo, patrocinado pelas autoridades políticas; como ele é reivindicado e contestado pelos seus agentes; como ele se espalha pelo mundo e como pode ser reconceituado sem ser universalizado. 

Um manifesto importante para um campo ainda em aberto, este livro demonstra a amplitude e o escopo do trabalho que a história do capitalismo pode provocar.

Sven Beckert é professor de História de Laird Bell na Universidade de Harvard e co-fundador do Programa de Estudos do Capitalismo. Ele é o autor de Empire of Cotton: A Global History (2014).

Christine Desan é professora de Direito Leo Gottlieb na Universidade de Harvard e co-fundadora do Programa de Estudos do Capitalismo. É autora de Making Money: Coin, Currency, and the Coming of Capitalism (2014).



Beckert, Sven and Christine Desan, eds. American Capitalism: New Histories. Columbia Studies in the History of U.S. Capitalism. New York: Columbia University Press, 2018.

The United States has long epitomized capitalism. From its enterprising shopkeepers, wildcat banks, violent slave plantations, huge industrial working class, and raucous commodities trade to its world-spanning multinationals, its massive factories, and the centripetal power of New York in the world of finance, America has come to symbolize capitalism for two centuries and more. 

But an understanding of the history of American capitalism is as elusive as it is urgent. What does it mean to make capitalism a subject of historical inquiry? What is its potential across multiple disciplines, alongside different methodologies, and in a range of geographic and chronological settings? And how does a focus on capitalism change our understanding of American history?

American Capitalism presents a sampling of cutting-edge research from prominent scholars. These broad-minded and rigorous essays venture new angles on finance, debt, and credit; women’s rights; slavery and political economy; the racialization of capitalism; labor beyond industrial wage workers; and the production of knowledge, including the idea of the economy, among other topics. Together, the essays suggest emerging themes in the field: a fascination with capitalism as it is made by political authority, how it is claimed and contested by participants, how it spreads across the globe, and how it can be reconceptualized without being universalized. A major statement for a wide-open field, this book demonstrates the breadth and scope of the work that the history of capitalism can provoke.

ABOUT THE AUTHORS
Sven Beckert is Laird Bell Professor of History at Harvard University and cofounder of the Program on the Study of Capitalism. He is the author of Empire of Cotton: A Global History (2014).

Christine Desan is Leo Gottlieb Professor of Law at Harvard University and cofounder of the Program on the Study of Capitalism. She is the author of Making Money: Coin, Currency, and the Coming of Capitalism (2014).



Key-words: Economic Systems; History; Finance; Trade; Economy; Policy; United States











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