Américo antes da América Vespúcio viveu como muitos florentinos de seu tempo: armando estratégias para se aproximar dos poderosos.
Só quarentão lançou-se ao oceano.
Plinio Freire Gomes, na Revista de História da Biblioteca Nacional.
O indivíduo cujo nome batizaria um continente passou boa parte de sua vida à margem do poder e das glórias.
Antes de inscrever seu nome na história das navegações e na geografia do mundo, Américo Vespúcio (1454-1512) colecionou inúmeras vocações, nem sempre bem-sucedidas: empregado dos Médici, credor, revendedor de pedras preciosas, mediador de conflitos, armador, investidor, piloto improvisado.
Ainda hoje a imagem de sábio se confunde com a de charlatão. Sua parábola, afinal, revela um sonhador com olhos nas estrelas ou um gênio da dissimulação e da impostura?
Américo nasceu num período de redefinições. A Europa do século XV foi tomada por uma inédita circulação de bens, que transformou as cidades em núcleos artesanais e manufatureiros cada vez mais interligados. O mercado em crescimento favorecia a disseminação de profissionais qualificados e de servidores do Estado, incrementando os setores médios da sociedade.
A escala e as ramificações dessa economia exigiam capacidade de realimentar, com dinheiro emprestado, as várias etapas do circuito. A renda passou assim a fluir para as mãos de um grupo muito restrito e ainda jovem – os banqueiros. Infelizmente para eles, o poder político permanecia atrelado à aristocracia agrária ou à Igreja. O resultado era um cenário próspero mas incerto, no qual os atores tinham boas razões para temer (ou desejar) as oscilações da sorte.
A forma mais visível de as classes emergentes consolidarem a própria legitimidade era por meio do refinamento intelectual. Se o gosto pelas artes e pelo consumo de luxo trouxe brilho ao período, foi graças ao espírito de rivalidade que reinava entre as elites. Outra ferramenta de mando consistia em sustentar uma massa de manobra destinada a cobrir postos-chave da administração, coagir adversários, operar transações comerciais ou simplesmente engrossar a legião de servos.
Eis a natureza da relação entre os Médici e os Vespúcio. A parentela do nosso protagonista tinha origens antigas, cujo patrimônio vinha do comércio da lã e da seda. É fácil imaginar que a busca por financiamento a tenha aproximado dos mais poderosos banqueiros da cidade, os Médici, criando entre as famílias um vínculo assíduo, embora desigual.
Para ter acesso aos favores da nobre família, Américo contou com a influência e a boa formação de seu tio, Giorgio Antonio Vespúcio. Graças a este homem, um dos intelectuais mais respeitados da cidade, o jovem foi iniciado na cultura dos humanistas, adestrando-se no latim e no conhecimento dos clássicos. A primeira tentativa de aproximação com os Médici se deu em 1478. Américo tinha 24 anos e, sob as ordens de Lorenzo de Médici, O Magnífico, acompanhou o tio numa missão diplomática a Paris. Dois anos mais tarde, estava de volta.
A sequência da história revela uma série de sucessos parciais, que pouco acrescentaram a seu currículo. Tentou estreitar contato com Lorenzo, porém foi logo descartado pelo magnata. Mudou de protetor e conseguiu entrar numa casa Médici, mas somente pela porta dos fundos. Sua incumbência era cuidar das despesas do palácio, à maneira de um administrador privado. Envolveu-se também com numerosas outras áreas, como revenda de pedras preciosas no varejo, cobrança de dívidas e mediação em casos de rixas contratuais. Atuou até como procurador de réus com pendências na Justiça.
Esse quadro sugere um homem maleável e de espírito prático, que tratava de se adaptar a qualquer situação. Seu maior talento, ao que parece, era tecer conexões. Não desdenhava misturar-se com pessoas da plebe, ainda que mirasse sempre o cume da pirâmide. Certo é que o horizonte dentro do qual Américo se movia era acanhado, pois a sociedade florentina era fortemente condicionada pelo arbítrio de uns poucos privilegiados. Para a multidão de subalternos, só restava garantir, por meio de expedientes variados, a proteção que vinha do alto. Não admira que Américo se desdobrasse em tantas atividades, e que cada iniciativa sua acontecesse à sombra de algum tipo de vínculo familiar. Até que chegou o momento em que a fortuna o arrastou numa roda-viva.
Aqui começa a história de outro Américo. Em 1488, ele foi instruído pelos Médici a recolher informações sobre a situação do banco na praça de Sevilha. Assim travou contato com investidores florentinos envolvidos no tráfico de urzela (um pigmento importado das Canárias) e em ações de pirataria contra navios negreiros de bandeira portuguesa. Ouviu falar de outro membro da colônia italiana, um certo Cristóvão Colombo, que pretendia alcançar tesouros sem fim atravessando o oceano. Foi quando as potencialidades da navegação, enfim, o contagiaram. Enquanto em Sevilha sonhava-se com a rota alternativa para o Oriente, em Florença, Américo amadurecia uma trilha diferente para si mesmo.
Trocar uma cidade pela outra era evidente falta de juízo. Significava renunciar ao patrocínio dos Médici, além de desmanchar uma rede de contatos construída em anos de trabalho. Significava também investir, e por conta própria, em um dos negócios mais arriscados do mercado: as explorações marítimas. Foi o que ele fez.
Esse lance arrojado tem muito em comum com o comportamento de outros aventureiros do século XV. As transformações que marcaram o período, especialmente no campo político, alimentavam como nunca o faro para a oportunidade e a propensão ao perigo. A Europa vivia um processo de reconfiguração territorial em várias frentes. A Leste, a queda de Constantinopla (1453) coroava a emergência do Império Otomano. A Oeste, Portugal e Castela disputavam entre si a supremacia no Atlântico. Ao Norte, França e Inglaterra punham fim à Guerra dos Cem Anos (1337-1453) consolidando duas entidades distintas e geograficamente separadas pelo Canal da Mancha. Por fim, na terra do próprio Américo, a Itália, diferentes repúblicas e reinos tratavam de alargar sua influência em um cenário de fronteiras permeáveis e ainda pouco definidas.
Esta série de conflitos é fruto da transição das fragmentadas soberanias feudais rumo ao Estado moderno. Na escala individual, o fenômeno se traduzia num contexto rico de impulsos e sobressaltos, em que seria mesquinho contentar-se com posições já garantidas. Respirava-se a aventura no ar, como se aqueles homens fossem predestinados à conquista.
Américo se transferiu para Sevilha em 1492, encontrando a cidade tomada pela ânsia e pelo júbilo por conta dos descobrimentos de Colombo. Seu foco de interesse foram, naturalmente, as naus em travessia pelo Atlântico. De início, limitava-se a reparar e a abastecer as frotas agenciando capitais na condição de “armador” – o mais enxuto dos ofícios do mar. Mas um naufrágio no Caribe levou a sociedade com a qual trabalhava à beira da falência e o colocou diante de um dilema: desistir ou arriscar mais.
Ressurge aqui sua capacidade de encarnar talentos improváveis. Removendo o pó das lições eruditas que recebera na juventude, acabou por ganhar a confiança de Colombo, já calejado pela experiência náutica. Era a época em que o almirante preparava outra viagem, a terceira, rumo ao seu sonhado Oriente. Havia, porém, perplexidade sobre a riqueza pouco consistente que ofereciam as terras recém-descobertas; juntos, os dois teriam revisitado escritos clássicos em busca de uma solução para o enigma. Este convívio resultaria em outro malabarismo vocacional para o florentino. Já era um quarentão quando tirou os pés da terra firme e se converteu em homem do mar.
As três viagens de que Américo participou, realizadas entre 1499 e 1503, tiveram o mérito de invalidar Colombo. Depois delas, ficou claro que as novas terras não eram a Índia nem a China, e sim um continente desconhecido. Mesmo sem ter sido responsável direto por essa descoberta, Américo foi recebido na corte como autoridade na matéria. Naturalizou-se espanhol e foi nomeado “piloto-maior”, o responsável oficial por todas as navegações do reino.
A essa altura, sua fama já corria a Europa. Chegou a ser equiparado a Ptolomeu (90-168), o pai da cartografia clássica, revolucionando com seu astrolábio o conhecimento do globo. Américo desfrutava do momento e exagerava na autocelebração. Numa série de relatos, vangloriou-se de ser o primeiro a determinar as coordenadas do Novo Mundo. Era um blefe. Pelo menos parte desses cálculos não podia ser realizada com os recursos da época. O fato é que um novo termo, com agradável sonoridade feminina, começou a fixar-se no senso comum – “América”. Para o homem que sempre perseguiu a fortuna, o saldo não poderia ser mais positivo.
Nem sonhador nem canalha, apenas aventureiro. E seu nome nunca mais saiu do mapa.
Plinio Freire Gomesé autor de Um herege vai ao Paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (Companhia das Letras, 1997).
Saiba Mais - Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luiz de. Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Américo: o homem que deu seu nome ao continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PARKS, Tim. Medici money: banking, metaphysics, and art in fifteenth-century. Nova York : W.W. Norton & Company, 2005.
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Só quarentão lançou-se ao oceano.
Plinio Freire Gomes, na Revista de História da Biblioteca Nacional.
O indivíduo cujo nome batizaria um continente passou boa parte de sua vida à margem do poder e das glórias.
Antes de inscrever seu nome na história das navegações e na geografia do mundo, Américo Vespúcio (1454-1512) colecionou inúmeras vocações, nem sempre bem-sucedidas: empregado dos Médici, credor, revendedor de pedras preciosas, mediador de conflitos, armador, investidor, piloto improvisado.
Ainda hoje a imagem de sábio se confunde com a de charlatão. Sua parábola, afinal, revela um sonhador com olhos nas estrelas ou um gênio da dissimulação e da impostura?
Américo nasceu num período de redefinições. A Europa do século XV foi tomada por uma inédita circulação de bens, que transformou as cidades em núcleos artesanais e manufatureiros cada vez mais interligados. O mercado em crescimento favorecia a disseminação de profissionais qualificados e de servidores do Estado, incrementando os setores médios da sociedade.
A escala e as ramificações dessa economia exigiam capacidade de realimentar, com dinheiro emprestado, as várias etapas do circuito. A renda passou assim a fluir para as mãos de um grupo muito restrito e ainda jovem – os banqueiros. Infelizmente para eles, o poder político permanecia atrelado à aristocracia agrária ou à Igreja. O resultado era um cenário próspero mas incerto, no qual os atores tinham boas razões para temer (ou desejar) as oscilações da sorte.
A forma mais visível de as classes emergentes consolidarem a própria legitimidade era por meio do refinamento intelectual. Se o gosto pelas artes e pelo consumo de luxo trouxe brilho ao período, foi graças ao espírito de rivalidade que reinava entre as elites. Outra ferramenta de mando consistia em sustentar uma massa de manobra destinada a cobrir postos-chave da administração, coagir adversários, operar transações comerciais ou simplesmente engrossar a legião de servos.
Eis a natureza da relação entre os Médici e os Vespúcio. A parentela do nosso protagonista tinha origens antigas, cujo patrimônio vinha do comércio da lã e da seda. É fácil imaginar que a busca por financiamento a tenha aproximado dos mais poderosos banqueiros da cidade, os Médici, criando entre as famílias um vínculo assíduo, embora desigual.
Para ter acesso aos favores da nobre família, Américo contou com a influência e a boa formação de seu tio, Giorgio Antonio Vespúcio. Graças a este homem, um dos intelectuais mais respeitados da cidade, o jovem foi iniciado na cultura dos humanistas, adestrando-se no latim e no conhecimento dos clássicos. A primeira tentativa de aproximação com os Médici se deu em 1478. Américo tinha 24 anos e, sob as ordens de Lorenzo de Médici, O Magnífico, acompanhou o tio numa missão diplomática a Paris. Dois anos mais tarde, estava de volta.
A sequência da história revela uma série de sucessos parciais, que pouco acrescentaram a seu currículo. Tentou estreitar contato com Lorenzo, porém foi logo descartado pelo magnata. Mudou de protetor e conseguiu entrar numa casa Médici, mas somente pela porta dos fundos. Sua incumbência era cuidar das despesas do palácio, à maneira de um administrador privado. Envolveu-se também com numerosas outras áreas, como revenda de pedras preciosas no varejo, cobrança de dívidas e mediação em casos de rixas contratuais. Atuou até como procurador de réus com pendências na Justiça.
Esse quadro sugere um homem maleável e de espírito prático, que tratava de se adaptar a qualquer situação. Seu maior talento, ao que parece, era tecer conexões. Não desdenhava misturar-se com pessoas da plebe, ainda que mirasse sempre o cume da pirâmide. Certo é que o horizonte dentro do qual Américo se movia era acanhado, pois a sociedade florentina era fortemente condicionada pelo arbítrio de uns poucos privilegiados. Para a multidão de subalternos, só restava garantir, por meio de expedientes variados, a proteção que vinha do alto. Não admira que Américo se desdobrasse em tantas atividades, e que cada iniciativa sua acontecesse à sombra de algum tipo de vínculo familiar. Até que chegou o momento em que a fortuna o arrastou numa roda-viva.
Aqui começa a história de outro Américo. Em 1488, ele foi instruído pelos Médici a recolher informações sobre a situação do banco na praça de Sevilha. Assim travou contato com investidores florentinos envolvidos no tráfico de urzela (um pigmento importado das Canárias) e em ações de pirataria contra navios negreiros de bandeira portuguesa. Ouviu falar de outro membro da colônia italiana, um certo Cristóvão Colombo, que pretendia alcançar tesouros sem fim atravessando o oceano. Foi quando as potencialidades da navegação, enfim, o contagiaram. Enquanto em Sevilha sonhava-se com a rota alternativa para o Oriente, em Florença, Américo amadurecia uma trilha diferente para si mesmo.
Trocar uma cidade pela outra era evidente falta de juízo. Significava renunciar ao patrocínio dos Médici, além de desmanchar uma rede de contatos construída em anos de trabalho. Significava também investir, e por conta própria, em um dos negócios mais arriscados do mercado: as explorações marítimas. Foi o que ele fez.
Esse lance arrojado tem muito em comum com o comportamento de outros aventureiros do século XV. As transformações que marcaram o período, especialmente no campo político, alimentavam como nunca o faro para a oportunidade e a propensão ao perigo. A Europa vivia um processo de reconfiguração territorial em várias frentes. A Leste, a queda de Constantinopla (1453) coroava a emergência do Império Otomano. A Oeste, Portugal e Castela disputavam entre si a supremacia no Atlântico. Ao Norte, França e Inglaterra punham fim à Guerra dos Cem Anos (1337-1453) consolidando duas entidades distintas e geograficamente separadas pelo Canal da Mancha. Por fim, na terra do próprio Américo, a Itália, diferentes repúblicas e reinos tratavam de alargar sua influência em um cenário de fronteiras permeáveis e ainda pouco definidas.
Esta série de conflitos é fruto da transição das fragmentadas soberanias feudais rumo ao Estado moderno. Na escala individual, o fenômeno se traduzia num contexto rico de impulsos e sobressaltos, em que seria mesquinho contentar-se com posições já garantidas. Respirava-se a aventura no ar, como se aqueles homens fossem predestinados à conquista.
Américo se transferiu para Sevilha em 1492, encontrando a cidade tomada pela ânsia e pelo júbilo por conta dos descobrimentos de Colombo. Seu foco de interesse foram, naturalmente, as naus em travessia pelo Atlântico. De início, limitava-se a reparar e a abastecer as frotas agenciando capitais na condição de “armador” – o mais enxuto dos ofícios do mar. Mas um naufrágio no Caribe levou a sociedade com a qual trabalhava à beira da falência e o colocou diante de um dilema: desistir ou arriscar mais.
Ressurge aqui sua capacidade de encarnar talentos improváveis. Removendo o pó das lições eruditas que recebera na juventude, acabou por ganhar a confiança de Colombo, já calejado pela experiência náutica. Era a época em que o almirante preparava outra viagem, a terceira, rumo ao seu sonhado Oriente. Havia, porém, perplexidade sobre a riqueza pouco consistente que ofereciam as terras recém-descobertas; juntos, os dois teriam revisitado escritos clássicos em busca de uma solução para o enigma. Este convívio resultaria em outro malabarismo vocacional para o florentino. Já era um quarentão quando tirou os pés da terra firme e se converteu em homem do mar.
As três viagens de que Américo participou, realizadas entre 1499 e 1503, tiveram o mérito de invalidar Colombo. Depois delas, ficou claro que as novas terras não eram a Índia nem a China, e sim um continente desconhecido. Mesmo sem ter sido responsável direto por essa descoberta, Américo foi recebido na corte como autoridade na matéria. Naturalizou-se espanhol e foi nomeado “piloto-maior”, o responsável oficial por todas as navegações do reino.
A essa altura, sua fama já corria a Europa. Chegou a ser equiparado a Ptolomeu (90-168), o pai da cartografia clássica, revolucionando com seu astrolábio o conhecimento do globo. Américo desfrutava do momento e exagerava na autocelebração. Numa série de relatos, vangloriou-se de ser o primeiro a determinar as coordenadas do Novo Mundo. Era um blefe. Pelo menos parte desses cálculos não podia ser realizada com os recursos da época. O fato é que um novo termo, com agradável sonoridade feminina, começou a fixar-se no senso comum – “América”. Para o homem que sempre perseguiu a fortuna, o saldo não poderia ser mais positivo.
Nem sonhador nem canalha, apenas aventureiro. E seu nome nunca mais saiu do mapa.
Plinio Freire Gomesé autor de Um herege vai ao Paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (Companhia das Letras, 1997).
Saiba Mais - Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luiz de. Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Américo: o homem que deu seu nome ao continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PARKS, Tim. Medici money: banking, metaphysics, and art in fifteenth-century. Nova York : W.W. Norton & Company, 2005.
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