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15 junho 2012

No xadrez político da Argentina

a rainha está sozinha no tabuleiro.

Cristina depende de uma vitória eleitoral com a mesma dimensão da do ano passado nas eleições parlamentares de 2013.

Argentina, uma ilha
César Felício*


Isolada no cenário argentino, Cristina Kirchner tem 48% de aprovação para seu governo, bem menos que os 70% registrados no fim do ano passado

No xadrez político da Argentina, a rainha está sozinha no tabuleiro. Seis meses depois do início de seu segundo mandato, a presidente Cristina Fernández de Kirchner impera sem a companhia dos sindicatos, dos governadores, da grande imprensa e dos movimentos sociais, dos industriais de peso, do setor bancário e dos latifundiários. No front externo, entrou em atrito com União Europeia, Estados Unidos e seus parceiros do Mercosul, Brasil entre eles. Em sua opção pelo isolamento, a deterioração da situação fiscal é a maior ameaça à hegemonia de Cristina.

A desaceleração econômica reduz a arrecadação e encurta o dinheiro para as transferências aos governos estaduais (províncias) e prefeituras e, sobretudo, para os programas sociais que alavancaram em outubro a reeleição de Cristina, com 54% dos votos. "A hegemonia de Cristina se organizou de cima para baixo, por meio do controle do caixa, e agora pode entrar em crise pelo mesmo motivo. A inflação corrói os programas sociais e os governadores começam a ter dificuldade de pagar salários e fornecedores", disse o analista internacional Jorge Castro, que foi secretário de Planejamento Estratégico no governo Ménem, entre 1998 e 1999.

Das 23 províncias argentinas, 13 estão em insolvência orçamentária, pela queda dos repasses federais. A mais importante de todas, a de Buenos Aires, é dona de metade do déficit, que soma US$ 5 bilhões. O governador Daniel Scioli, pretendente à Presidência em 2015, se desgastou ao decretar um aumento de até 350% no imposto sobre propriedades rurais. Em Entre Ríos, o governador Sergio Urribarri, aliado incondicional de Cristina, ainda não pagou os salários de maio, mas aumentou impostos em até 600%. Em Córdoba, o governador Juan Manuel De La Sota busca crédito internacional para obras viárias, mas não tem como arcar com a folha de aposentados.

Das 23 províncias, 13 estão insolventes, inclusive a mais importantes de todas, a de Buenos Aires, que carrega metade do déficit

O modelo institucional argentino esvazia o Congresso como instância de poder, já que os deputados são eleitos dentro de listas partidárias de base regional. Na hegemonia de Cristina, a novidade foi a decadência do poder dos governadores, evidenciada no ano passado. Pela primeira vez desde a redemocratização, partiu da própria presidente a palavra final sobre os candidatos que encabeçariam cada lista, tirando um poder que sempre coube aos chefes regionais.

Se os governadores sofrem calados, ainda é incerto o comportamento dos prefeitos do entorno de Buenos Aires, o chamado "conurbano", área onde brotou a revolta que derrubou em dezembro de 2001 o presidente Fernando De La Rúa e que concentra um quarto da população do país. Só um município, o de La Matanza, reúne um eleitorado equivalente ao de toda a Patagônia argentina.

Ao contrário do que acontece com os governadores, os prefeitos não estão pendurados em dívidas. Mas dependem do poder central para tocar obras públicas e organizar a assistência social. "As transferências de recursos aos municípios para obras públicas se multiplicaram por quatro no governo Cristina e isto não tem mais como ser mantido. Esta é a raiz do problema", comentou o cientista político Germán Lodola, da Universidade Torcuato di Tella.

http://www.valor.com.br/sites/default/files/crop/imagecache/media_library_small_horizontal/0/0/737/482/sites/default/files/gn/12/06/foto15cul-602-capa-d10.jpg http://www.valor.com.br/sites/default/files/crop/imagecache/media_library_small_horizontal/0/0/737/482/sites/default/files/gn/12/06/foto15cul-602-capa-d10.jpgNas ruas, protestos refletem a diminuição de recursos para os programas sociais.

A inflação mascarada na Argentina começou a cavar um fosso nos programas de transferência de renda, que já beneficiavam 21% da população do país em 2010, segundo o "Barômetro das Américas", pesquisa organizada pela Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, da qual Lodola é um dos coordenadores. E os programas assistenciais são estratégicos para a aliança do governo federal com os movimentos sociais, que data de 2003, quando Néstor Kirchner (marido de Cristina, morto em 2010) tornou-se presidente.

Os programas sociais começaram no fim dos anos 1990, ainda no governo de Carlos Ménem, como reação para apaziguar os primeiros movimentos de desempregados que levantavam barreiras nas rodovias (os "cortes"). Ménem entregou o governo em 1999 em meio a 252 cortes. Nos dois anos de governo De la Rúa, o governo cortou os planos assistenciais e o número de piquetes passou a 1.383 em 2001.

Ao ser eleito, Néstor Kirchner não apenas manteve os planos de assistência como abriu espaço aos movimentos nas listas de deputados e em cargos na administração. Os líderes piqueteiros, como Luis D'Elia, que comanda ocupações urbanas, ou Emilio Persicco, do Movimento Evita, tornaram-se políticos da base governista. Com a ascensão de Cristina, os movimentos perderam espaço no governo, mas os programas foram ampliados.

Se conseguir maioria absoluta nas eleições parlamentares de 2013, Cristina poderá mudar a Constituição para buscar um terceiro mandato

O ponto culminante foi a criação, em 2009, da alocação universal por filho (AUH), equivalente ao Bolsa Família brasileiro. O valor do benefício, contudo, é corrigido abaixo da inflação. Na Argentina, desde 2007, a variação oficial de preços é calculada em apenas cerca de 10% ao ano, muito menos que as estimativas de todos os agentes econômicos. A correção dos benefícios sociais no ano passado ficou abaixo de 20%.

Até 2011, os sindicatos argentinos conseguiram reajustes que cobriam com folga a variação de preços. Houve categorias, como os empregados da indústria da alimentação, que conseguiram reajustes de 35%. Esse tempo também ficou para trás. Com o freio na economia, vários sindicatos fecharam reajustes entre 18% e 24%. Outros retardaram as negociações, esperando o resultado da disputa pela presidência da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), campo em que Cristina tenta desalojar o cacique Hugo Moyano, líder dos caminhoneiros, que comanda o sindicalismo argentino desde o fim dos anos 1990.

Enquanto Néstor Kirchner foi vivo, Moyano cresceu dentro da estrutura política, comandando o partido peronista na província de Buenos Aires e colocando parentes em postos-chave em outros sindicatos e na estrutura do governo. Hoje, o líder sindical vive um cerco político. "Cristina parte de uma construção política menos ampla que Néstor Kirchner, embora, paradoxalmente, seja uma presidente com força popular muito maior. Ela vive um enfrentamento pessoal com Moyano e decidiu limitar o crescimento político sindical", disse Lodola.

Em meio à solidão cristinista, quem cresceu foi o movimento "La Cámpora". Formalmente, é uma espécie de juventude peronista, ainda que seus dirigentes não sejam tão jovens: estão na faixa entre 30 e 40 anos e são comandados pelo filho da presidente, Máximo Kirchner. A gestação palaciana fez com que seja um movimento organizado de cima para baixo e vitaminado com empregos públicos: os integrantes da corrente ocupam dez cadeiras no Congresso, comandam a Aerolíneas Argentinas, a empresa aérea estatal, e foram indicados por Cristina para integrarem os conselhos de administração de todas as empresas nas quais o governo participa da direção.

Isolada no cenário argentino, a presidente conta com 48% de aprovação para seu governo, segundo o cientista político Sérgio Berensztein, coordenador de pesquisas de opinião pública do Instituto Poliarquia. É uma oscilação forte em relação aos 70% que aprovavam a administração no fim do ano. Na Argentina, ao contrário do que acontecia no Brasil no tempo de Lula, a aprovação pessoal da presidente é menor que a de seu governo. Cristina ganhou as eleições porque colheu os frutos do melhor momento econômico da Argentina desde a Segunda Guerra Mundial: a partir de 2003, os produtos exportados pela Argentina, como a soja, tiveram valorização inédita no mercado internacional, principalmente em função da demanda chinesa.

Fora do mercado internacional de títulos, o país mantém um baixo nível de endividamento e teve caixa para manter uma expansão econômica longa. "Os termos de intercâmbio, ou seja, o poder de compra da Argentina, ao se relacionar a pauta de exportações do país com a pauta de importações, teve em 2011 o seu momento mais favorável desde 1948", comentou Jorge Castro.

Mas a vitória de Cristina também se explicou pela desorganização da oposição. Dividida entre cinco candidatos, não empolgou. E até agora está sem liderança clara. Seu nome mais conhecido, o do prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, é identificado como oposicionista por apenas 30% da opinião pública, segundo pesquisa da Poliarquia.

Em 2011, a parcela da população que não embarcou na odisseia kirchnerista não mostrou o seu desagrado com o voto na urna, mas nas filas das casas de câmbio. O mês da reeleição de Cristina marcou uma saída recorde de divisas do país. A resposta foi uma catarata de medidas que tornou a compra de dólar um objetivo virtualmente impossível para o poupador argentino.

Sem poder se reeleger em 2015, Cristina depende de uma vitória eleitoral com a mesma dimensão da do ano passado nas eleições parlamentares de 2013. Caso consiga maioria absoluta folgada nas duas casas do Congresso, poderá mudar a Constituição para buscar um terceiro mandato. Apesar da solidão da presidente, ninguém descarta a possibilidade de que o roteiro de 2011 se repita e Cristina tenha outro triunfo solitário. "Essencial será saber se o governo terá caixa para manter sua hegemonia. A Argentina é simples de entender. Mas tem sua própria lógica", definiu o analista internacional Jorge Castro.



* Artigo publicado em Valor Econômico, 15/06/2012

 
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