O ativista Kevin Young, da Organização por uma Sociedade Livre, dos EUA, uma das promotoras da marcha “Ocuppy Wall Street”, relembrou o ensinamento de antigos militantes, segundo os quais "primeiro, eles ignoram você. Depois, eles riem de você. Em seguida, eles atacam você, e então você os vence".
O
que há de comum entre as mobilizações da Tunísia, Egito, Iêmen e Síria,
com as do Reino Unido, Itália e Chile; Portugal e Grécia; as da Espanha
com as dos Estados Unidos?
Muita
coisa, mas vamos com calma. A lista de diferenças é ainda maior. Mesmo
na Primavera Árabe, a Revolução Jasmim, da Tunísia, e a Revolução de
Lótus, do Egito, floresceram em um mesmo terreno, mas são espécimes
diversos.
Respeitadas
essas diferenças, o que há de semelhante pode e deve ser considerado
global. Há questões econômicas, sociais, políticas e culturais comuns.
A
mais evidente é a indignação contra as desigualdades econômicas e
sociais e a dominação política que as mantém e as faz aumentar. O slogan
novaiorquino “somos os 99%” estampou a sensação de que a maioria vive
no mundo da carência por se deixar dominar politicamente pelo 1% que
vive no mundo da opulência. A mesma ideia ganhou diferentes expressões
em todos os cantos. É um sentimento global compartilhado.
A
crise internacional é um fator comum. Ela tem gerado a revolta contra o
mundo das finanças, que mandou as pessoas desocuparem suas casas
hipotecadas, nos Estados Unidos, que demitiu servidores públicos na
Grécia, que desempregou em massa na Espanha. A inflação mundial, com
tendência de crescimento, tem como uma de suas vertentes o encarecimento
dos alimentos, que afeta mais diretamente a população pobre. Este foi
um problema de fundo na Tunísia, no Egito e no Oriente Médio. A
estagnação econômica elevou o desemprego e todos se perguntam por que os
governos ajudam os bancos, mas não ajudam as pessoas em pior situação.
A
maneira como os manifestantes foram tratados também tem traços em
comum. Primeiro eles foram tidos por vozes isoladas; depois,
provocadores, baderneiros, criadores de confusão. O governo sírio chamou
os revoltosos de gangues. As autoridades britânicas também. O Partido
Conservador cogitou criar um esquadrão especial antiprotestos e
restringir o uso da internet, o que, convenhamos, são propostas para
ditador algum botar defeito.
O ativista Kevin Young,
da Organização por uma Sociedade Livre, dos EUA, uma das organizadoras
da marcha “Ocuppy Wall Street”, relembrou o ensinamento de antigos
militantes, segundo os quais "primeiro, eles ignoram você. Depois, eles
riem de você. Em seguida, eles atacam você, e então você os vence".
Há uma revolta global contra a esclerose das referências políticas
tradicionais. Isso vale para a Tunísia, o Egito, a Líbia, o Iêmen, mas
também para a Europa, os Estados Unidos e o Chile. No caso das
ditaduras, a esclerose estava associada à figura dos próprios ditadores.
Ocorre o mesmo com Berlusconi, na Itália. Nos demais países, a
esclerose é dos partidos, que não se renovam ou não empunham projetos
alternativos, menos capazes ainda de encampar a defesa da igualdade.
As
manifestações tiveram referências espontâneas, mas contaram com o apoio
e o ativismo de várias organizações, algumas mais, outras menos
consolidadas, mas todas essenciais para que a indignação tomasse as
ruas. O desafio é justamente conseguir canalizar a energia de sua
espontaneidade para referências políticas capazes de montar coalizões
governantes e disputar projetos de poder em seus países.
Há
mudanças demográficas globais em curso afetando principalmente jovens,
mulheres e idosos. Surgiram novas formas de expressão cultural e novos
hábitos de consumo de informação. Há uma revolta contra a velha mídia
por conta da deturpação ou omissão de informações, do sarcasmo contra os
pobres e da celebrização dos opressores.
As
marchas desmentiram aqueles que por aí diziam que havia acabado a época
das grandes mobilizações populares, e que as novas maneiras de
protestar eram cada vez mais individuais e virtuais. A comunicação
eletrônica, ou autocomunicação de massa (como diz Manuel Castells), deu fôlego às manifestações, facilitou a mobilização, protegeu ativistas, disseminou a revolta.
O
feitiço virou-se contra o feiticeiro, e a tão propalada globalização
agora ganha a forma de protesto, com cores muito diferentes, mas com um
leve toque de jasmim.
* Cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
Artigo publicado na Carta Maior, 16 de outubro de 2011.
Leia também "O inferno astral do neoliberalismo".
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