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28 junho 2010

O mundo em 2022


Polêmico e instigante artigo do ministro Samuel Guimarães, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Sugere um interessante posicionamento estratégico para o Brasil diante do cenário internacional futuro

O Mundo em 2022
Samuel Pinheiro Guimarães
08 de junho de 2010

   1. No limiar do bicentenário de nossa Independência, quando se inicia a etapa soberana e altiva de construção do Brasil multirracial, multicultural, multifacetado, em que hoje vivemos, enfrentamos desafios que são mais do que extraordinários. E os desafios que teremos de enfrentar de hoje até 2022 serão, sem qualquer exagero, formidáveis. Internos e internacionais. Internos, devido à necessidade, para poder celebrar com orgulho a data simbólica de 2022, de reduzir de forma radical as desigualdades sociais que nos dividem e que nos atrasam; de eliminar as vulnerabilidades externas que nos ameaçam em nosso curso e de realizar nosso gigantesco potencial humano e material. Esta tarefa urgente e árdua, para ser válida, terá de ser realizada em uma trajetória de pertinaz aprofundamento de nossa democracia que amplie a participação efetiva do legítimo dono do Estado brasileiro, que é o povo, na gestão do Estado que é seu. Tudo nos entrechoques de uma dinâmica internacional que cada vez mais nos afeta e na qual tem o Brasil a cada dia que passa um papel mais importante.
   2. A evolução da sociedade internacional em todos os seus aspectos políticos, militares, econômicos, tecnológicos e sociais será relevante, ainda que não determinante, para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Será relevante mas não determinante porque o Brasil, devido a suas dimensões territoriais e demográficas e aos seus extraordinários recursos naturais, tem a possibilidade cada vez maior de influir sobre o sistema internacional e de torná-lo menos hostil à defesa de seus interesses e à realização de seus objetivos. Esse sistema internacional daqui até 2022 terá aspectos fundamentais semelhantes aos que apresenta hoje.
   3. O capitalismo continuará a ser a característica econômica estrutural do sistema mundial daqui até 2022. Variará, todavia, de país para país, o grau de participação do Estado na economia seja em termos de regulamentação das atividades produtivas e do consumo seja através de sua atividade empresarial de forma direta ou associada ao capital privado. A extensão do papel do Estado é a grande questão que surgiu com a crise de 2008, em que ainda está o mundo imerso, resultado da aplicação extremada da ideologia neoliberal, crise que clama por uma solução.
   4. A característica política essencial do sistema internacional será a permanência das Nações Unidas como seu centro, variando apenas o grau de expansão da competência de seu Conselho de Segurança e a participação nele de um número maior de países. Em um mundo de Estados soberanos, ainda que muito desiguais em poder, até 2022 e mesmo após essa data, dificilmente seria possível imaginar uma nova organização de governança global, aceita por todos os Estados como legítima, que não sejam as Nações Unidas. Apesar dos esforços intermitentes dos Estados mais poderosos para criar articulações paralelas, excludentes e oligárquicas, as Nações Unidas prevalecerão como a organização central do sistema.
   5. O hiato de poder militar entre os Estados Unidos e os demais Estados continuará em 2022 a ser o fato estratégico fundamental. Esse hiato tenderá a se ampliar; porém, deverá variar o grau de multipolaridade do sistema político-militar, o que dependerá em grande medida do sucesso da evolução política, econômica e militar do Brasil, da Rússia, da Índia e, em especial, da China e de sua capacidade de se articularem entre si para reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário.
   6. O Brasil terá de atuar com firmeza sobre a evolução das principais tendências do sistema internacional de forma a criar o ambiente mais favorável possível ao seu desenvolvimento econômico e social, à defesa e à promoção de seus interesses políticos e econômicos na esfera internacional e ao seu desenvolvimento político interno, em uma sociedade cada vez mais democrática. Naturalmente, quanto mais bem sucedido for o Brasil em reduzir suas disparidades sociais e em, assim, criar um grande mercado interno; quanto mais exitoso for em eliminar suas vulnerabilidades externas; quanto mais persistente em seu esforço de realizar o seu extraordinário potencial de produção e, finalmente, quanto mais fortalecer sua democracia, tanto maior será sua capacidade de agir no campo internacional. Mas não é possível esperar por que isto aconteça para então agir internacionalmente pois o sistema mundial não só não espera pelo Brasil como a ele faz incessantes demandas e por isto, ao mesmo tempo em que se constrói e se transforma o Brasil, é necessário agir sobre as principais tendências internacionais para impedir que se cristalizem os privilégios de que gozam as potências tradicionais e para torná-las mais favoráveis ao nosso desenvolvimento.
   7. Prever a evolução política, econômica, militar e social do mundo, mesmo no prazo de doze anos, é tarefa de enorme dificuldade. Esta imprevisibilidade decorre em grande medida das alterações de política que se verificam periodicamente nos diferentes Estados, provocadas pela alternância de controle do poder político, que ocorre em momentos distintos, não-sincronizados; dos efeitos dessas mudanças políticas sobre a posição relativa de cada Estado no cenário e na dinâmica internacional; e a ocorrência de eventos de ruptura, como foi o 11 de setembro.
   8. Os modelos mais sofisticados dificilmente poderiam ter previsto, cerca de dez anos antes, em 1981, que a União Soviética se desintegraria territorialmente em 1991, momento em que aquela Superpotência se tornou o país emergente que a Rússia ainda é em 2010; a reviravolta de política econômica e a ascensão vertiginosa da China a partir de 1979, para vir a se tornar a segunda maior potência econômica mundial em 2010 e, talvez, a primeira em 2022.
   9. Por essas razões e por outras, tais como a escassez de dados e a reduzida confiabilidade de muitos daqueles disponíveis, ao invés de tentar construir um cenário ideal ou um conjunto de cenários em torno de um suposto cenário central que representasse a projeção de uma evolução histórica, é bem mais útil identificar as grandes tendências do sistema internacional e examinar sua provável situação no ano de 2022. Essas principais tendências são:
a aceleração da transformação tecnológica;
- o agravamento da situação ambiental-energética;
- o agravamento das desigualdades sociais e da pobreza;
- as migrações, o racismo e a xenofobia;
- a contínua globalização da economia mundial;
- a multipolarização econômica e política;
- a concentração de poder;
- a normatização internacional das relações entre Estados, empresas e indivíduos; e
- a definição internacional de parâmetros para as políticas domésticas dos Estados subdesenvolvidos.
  10. O progresso científico e tecnológico afeta todas as atividades civis, econômicas e sociais e todas as atividades militares. A aceleração da transformação tecnológica modifica as relações de poder entre os Estados e a intensidade da competição entre as mega-empresas e, portanto, da competição econômica entre os Estados. Além disso, a aceleração da transformação tecnológica influencia fortemente todas as demais tendências do sistema mundial.
  11. Na economia, o avanço tecnológico, em especial no campo da informática, e, nos próximos anos, em nanotecnologia, continuará a transformar os processos físicos produtivos e a própria organização gerencial das empresas, sendo fator determinante para os resultados da acirrada disputa entre empresas a qual determina um certo padrão de distribuição da riqueza mundial e um vetor importante das tendências à crescente oligopolização de mercados.
  12. O progresso no campo da biotecnologia e da engenharia genética tem ampla repercussão sobre a competitividade das empresas agrícolas, o que afeta a situação dos países subdesenvolvidos, tanto exportadores como produtores de alimentos e de matérias-primas. De outro lado, esses avanços têm forte impacto sobre a saúde das populações, sobre a expectativa de vida média comparada entre as sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas e sobre o formato de suas pirâmides demográficas, com importantes conseqüências econômicas.
  13. No campo militar, o progresso tecnológico afetará desde a doutrina ao equipamento e aumentará cada vez mais a eficiência letal dos armamentos, a sua miniaturização, o seu controle remoto, a sua colocação no espaço e terá como conseqüência a ampliação do hiato de poder, em especial entre os Estados Unidos e os Estados subdesenvolvidos da periferia. Por outro lado, certos aspectos do progresso da tecnologia militar permitirão mesmo àqueles países econômica e politicamente mais fracos dispor de certo poder de dissuasão face à permanente, e mal dissimulada, intimidação dos Estados mais fortes e, desse modo, impedir o uso da força.
  14. O progresso científico e tecnológico afeta, finalmente, o próprio setor de produção científica e tecnológica, composto pelo enorme complexo de empresas, universidades, laboratórios e centros de pesquisa. Este progresso permitirá construir equipamentos de pesquisa cada vez mais complexos e precisos e o aumento exponencial da capacidade de processamento de dados e de simulação de experimentos, o que contribuirá, juntamente com cada vez maiores recursos alocados à pesquisa, para a própria aceleração do progresso científico e tecnológico.
  15. A aceleração do progresso científico e tecnológico contribui de forma muito significativa para a concentração de poder de toda ordem, na medida em que os países que se encontram no centro do sistema investem valores muito superiores àqueles que investem mesmo os maiores países subdesenvolvidos, emergentes ou não, como o Brasil. Esta é uma tendência central e deve constituir a principal preocupação da estratégia brasileira na esfera internacional e doméstica: como acelerar e ampliar a transferência, absorção e geração de tecnologia através de processos eficazes e de um esforço doméstico de investimento muito maior do que aquele feito nas últimas décadas. Os Estados Unidos investem hoje por ano cerca de 450 bilhões de dólares em pesquisa e registram 45.000 patentes, enquanto que o Brasil investe 15 bilhões de dólares e registra 550 patentes. Se não for implementado um programa enérgico e persistente de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, se possível com a empresa privada e se acaso ela não se interessar pelo Estado, não só o hiato entre o Brasil e outros países se aprofundará como não poderão ser resolvidos os desafios brasileiros de crescimento acelerado com firme distribuição de renda.
  16. Essa ampla e complexa dinâmica de transformação tecnológica nos campos da economia civil e militar, agora influenciada pelo desafio ambiental-energético, continuará a se verificar no período que vai até 2022 e determinará em grande medida a posição de poder relativo dos Estados tanto em termos econômicos como militares.
  17. O agravamento da situação ambiental-energética será um aspecto marcante do período que transcorrerá de hoje até 2022. A transformação das atividades humanas tanto civis como militares, a partir da Revolução Industrial, cujo início pode ser datado da invenção da máquina a vapor, baseou-se na utilização de combustível fóssil, de início o carvão e mais tarde o petróleo e o gás, para gerar energia e movimentar veículos. A queima de combustíveis fósseis tem liberado desde então trilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases que, ao incrementarem suas concentrações na atmosfera, provocam o efeito estufa, i.e. impedem que as radiações decorrentes dos raios solares que aquecem a superfície da terra se dissipem. A expansão das atividades industriais com base nas teorias liberais relativas à melhor organização da produção e do consumo, a partir do dogma do livre jogo das forças de mercado, levou, de um lado, a um desperdício enorme de recursos naturais e de vidas humanas e, de outro lado, à convicção arraigada de que cada indivíduo (que detenha poder de compra) tem o direito de escolher o que consumir, como consumir, onde consumir.
  18. Essa evolução industrial-energética e essa filosofia individualista levaram à crise ambiental que hoje se vive, cuja natureza é política, econômica e tecnológica. Sua solução exige a radical adoção de metas e de políticas firmes de redução da emissão de gases a níveis inferiores ao que ocorreu no passado para tão somente minimizar os efeitos do acúmulo do estoque de gases na atmosfera; essas metas e políticas envolvem a posição relativa de poder econômico e político entre os Estados e a modificação da matriz energética, cuja base atual é o carbono, para uma matriz com base em fontes renováveis de energia.
  19. Tudo indica que essa transformação será lenta e conflituosa devido aos poderosos e numerosos grupos de interesse econômico dentro dos países, suas profundas repercussões sobre certos setores e as mega-empresas que neles atuam, tais como o setor de mineração, do petróleo e a indústria automobilística. Assim, em 2022, a questão da mudança do clima ainda será parte essencial da dinâmica política internacional.
  20. A eventual solução da crise ambiental-energética passa por uma profunda reestruturação da matriz energética e de transportes nos países, histórica ou recentemente, principais emissores de gases estufa, com significativo aumento de custos de produção e de transporte (comércio). Neste processo, esses países principais emissores tentarão dividir a carga de seus compromissos totais com os principais países emergentes para que se alcancem metas globais de redução de emissão com menor compromisso de redução e “sacrifício” econômico de parte deles.
  21. Ora, o enfrentamento e a solução da questão ambiental-energética não pode ser feito com prejuízo das perspectivas e do direito ao desenvolvimento dos países subdesenvolvidos e muito menos daqueles chamados emergentes, cada vez maiores e mais significativos competidores dos países desenvolvidos, mesmo em setores de tecnologia avançada, a pretexto de que os recursos naturais e o aquecimento global não permitiriam a esses últimos países vir a desfrutar dos mesmos níveis de consumo alcançados pelos desenvolvidos.
  22. O Brasil se encontra excepcionalmente bem colocado nesta questão devido à sua matriz energética, e em especial elétrica, extremamente limpa em termos internacionais comparativos. A contribuição do Brasil em matéria de mudança do clima é limitar o desmatamento, responsável por 75% das emissões de gases de efeito estufa pelo Brasil.
  23. O desafio aqui é evitar que as tendências humanistas e utópicas de grupos extremistas na sociedade brasileira, formados em grande parte por cidadãos urbanos e de classe média e alta, que não compreendem a complexidade da questão ambiental em sua faceta econômica e tem uma visão idílica da natureza física das atividades produtivas modernas, venham a dificultar a realização do potencial da sociedade brasileira, a aceleração do seu desenvolvimento e a redução das extraordinárias disparidades que nos afligem. A “defesa” do meio ambiente pelos países desenvolvidos muitas vezes correspondem a medidas protecionistas comerciais, como a tentativa de acusar a pecuária e o etanol brasileiro como atividades prejudiciais ao meio ambiente.
  24. O Brasil terá de lutar daqui até 2022 para que as soluções negociadas internacionalmente para enfrentar a crise ambiental global não privilegiem os históricos e que continuam a ser os atuais principais emissores per capita de gases em prejuízo dos países em desenvolvimento em sua tarefa inarredável de acelerar a transformação de sua estrutura produtiva e, em segundo lugar, cooperar com os países ainda mais atrasados e dependentes energéticos para que possam diversificar suas matrizes e, finalmente, para acentuar ainda mais o caráter “limpo” de sua própria matriz energética, no que diz respeito a transportes e à preservação dos biomas.
  25. A partir da hegemonia da filosofia e das políticas neoliberais, a qual se inicia com os governos de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher, houve um desmonte do Estado do Bem-Estar, através de uma redução dos programas sociais, de políticas tributárias ostensiva e descaradamente favoráveis aos mais ricos, de um processo de desregulamentação da atividade econômica das empresas, de um esforço de liberalização do mercado de trabalho que teria de levar, necessariamente, a um agravamento das disparidades sociais em termos de renda e de riqueza dentro de cada país e entre os países.
  26. As políticas neoliberais na esfera internacional e nos países subdesenvolvidos, que levaram à ampliação e agravamento da pobreza, tiveram suas conseqüências agravadas pela crise econômica de 2008 que atingiu as exportações dos países subdesenvolvidos (e pobres) que sofreram o impacto da queda de demanda por seus produtos nos países ricos e, portanto, a redução de seu nível de emprego e de sua capacidade de importar para consumir e investir.
  27. A perspectiva para os próximos anos até 2022 é pouco auspiciosa. Os países desenvolvidos têm demonstrado não estarem dispostos nem a reduzir suas políticas de proteção à sua agricultura, nem a ampliar suas políticas de ajuda ao desenvolvimento, nem a ampliar seus investimentos na África e em países de menor desenvolvimento relativo, nem a financiar despesas com mitigação e adaptação ambiental nesses países.
  28. O Brasil daqui até 2022 terá, de um lado, de ampliar e aprofundar suas políticas domésticas de redução de desigualdades, de toda ordem, e de acesso aos bens públicos – educação, saúde, saneamento, habitação, informação – através, inclusive, da expansão do emprego e de sua proteção. Simultaneamente, deverá ampliar seus programas de cooperação social, em especial com os países vizinhos e da África, e contribuir do ponto de vista financeiro e técnico para o fortalecimento de sua infra-estrutura, base indispensável de seu desenvolvimento e da redução da pobreza.
  29. As crescentes diferenças de bem-estar entre as sociedades, o insuficiente desenvolvimento econômico, a fraca geração de empregos na periferia subdesenvolvida e o crescimento demográfico nos países subdesenvolvidos tem gerado importantes fluxos migratórios, de causa econômica, da periferia em direção aos países altamente desenvolvidos. A instabilidade política, a violência anômica e as guerras civis em Estados da periferia e a desintegração de Estados tem estimulado fluxos migratórios de causa política para os países desenvolvidos e a formação de grandes populações de refugiados e deslocados dentro de países ou em países vizinhos aos países conflagrados.
  30. Os fluxos migratórios se atenuaram, em alguma medida, como resultado da grande crise econômica que se inicia em 2008 e que teve como efeitos reduzir as oportunidades de emprego nos países centrais e, por esta razão (e outras), provocar o endurecimento das legislações nacionais de imigração e estimular os movimentos racistas e xenófobos, em especial contra as populações muçulmanas e negras.
  31. Os movimentos migratórios tenderão a persistir no período de 2010 a 2022 e até mesmo a se agravar na medida em que for retomado o crescimento no centro do sistema, se ampliar o hiato econômico entre os países do centro e da periferia, em que não houver uma política ampla e sistemática de combate à fome e à pobreza, em que permanecer a tendência a intervenção política dos Estados do centro na periferia, em que os países subdesenvolvidos continuarem a se enfraquecer devido à permanente evasão de sua mão-de-obra altamente qualificada para o centro do sistema mundial.
  32. Estes movimentos migratórios, tanto econômicos quanto políticos, que deveriam ser o complemento, na esfera do trabalho, ao processo de globalização que corresponde à eliminação das barreiras ao comércio de bens e aos fluxos de capital, sempre tão louvados e promovidos pelos países desenvolvidos, são por esses mesmos países firmemente combatidos e reprimidos.
  33. Cabe ao Brasil, que se tornou um país de emigração/imigração, em primeiro lugar continuar a combater as medidas e políticas xenófobas, discriminatórias e de criminalização contra os imigrantes postas em prática nos países do centro do sistema; a acolher os imigrantes que se dirigem ao Brasil, principalmente aqueles de sua vizinhança, e a insistir na ampliação da cooperação internacional, comercial, financeira e técnica, dos países mais avançados aos países da periferia, com base na idéia de que a estabilidade e o progresso econômico nos países subdesenvolvidos criarão as condições para que sua população, como é natural, prefira permanecer em seus países de origem.
  34. A histórica tendência à globalização da economia mundial, ainda que afetada pela redução da atividade econômica, pelas atuais incertezas, pelo risco de depressão e pelas pressões protecionistas, tenderá a continuar até, e mesmo após, 2022. Essa tendência decorre do elevado grau de inter-relação e simbiose, que, passada a crise que se iniciou em 2008, se ampliará entre a China como exportadora de manufaturados e importadora de alimentos, matérias-primas e de energia; a Europa como importadora de alimentos, matérias-primas, de energia e de manufaturados e exportadora de manufaturados; os Estados Unidos como importador de energia e exportador de manufaturados e de produtos agrícolas; e os países periféricos subdesenvolvidos, de modo geral exportadores de mão-de-obra, de produtos primários e de energia e importadores de manufaturas. Além disso, as fusões de mega-empresas multinacionais criam redes cada vez mais amplas e complexas de unidades produtivas em distintos territórios porém sempre subordinadas a suas sedes, contribuindo para ampliar o grau de globalização da economia e, por conseguinte, a interdependência entre as distintas economias nacionais. A integração financeira global, ainda que tão abalada pela crise do final da primeira década do Século XXI, prosseguirá, porém de forma mais regulada, como arcabouço necessário do sistema de globalização produtiva que existirá em 2022.
  35. O sistema econômico internacional será caracterizado, em 2022, pela existência de mega-empresas multinacionais que, em conjunto, serão responsáveis pela maior parcela da produção das economias nacionais, controlarão grande parte do comércio internacional, ampliarão os fluxos de comércio intrafirma e se articularão em grandes estruturas oligopolísticas e cartelizadas em escala internacional, de natureza muitas vezes verticalizada.
  36. Diante dessa inevitável tendência à globalização (e das conseqüentes tentativas permanentes de uniformização das regras que “disciplinam” as atividades das mega-empresas nos distintos mercados em favor delas) cabe ao Brasil garantir no período que vai até 2022 que, de um lado, tais regras não prejudiquem a capacidade de elaborar e implementar políticas nacionais de desenvolvimento adequadas aos desafios estruturais da sociedade brasileira, tais como suas extraordinárias disparidades, suas vulnerabilidades externas, seu potencial, políticas que terão de ser distintas daquelas que são adequadas às sociedades maduras, desenvolvidas e, de outro lado, estimular o fortalecimento de mega-empresas brasileiras nos mais distintos setores, que vão desde a telefonia até a aviação e à produção agrícola, para que possam atuar no cenário mundial globalizado e impedir que o Brasil se transforme em uma mera plataforma de produção e exportação de mega-empresas multinacionais, cujas sedes se concentram em países altamente desenvolvidos.
  37. A tendência à multipolarização, i.e. à estruturação de grandes blocos/áreas de influência econômica e política, permanecerá até 2022, em suas três vertentes. A primeira corresponde à estratégia da União Européia de ampliar seu espaço geopolítico até os limites da Rússia e de celebrar acordos de livre comércio com países da periferia subdesenvolvida, principalmente com suas ex-colônias. Através dessa ampliação, são incorporados à União Européia, como sócios menores, pequenos Estados da Europa e, através dos acordos com países subdesenvolvidos da periferia, são estabelecidas relações econômicas e políticas no estilo tradicional que caracterizava os sistemas dos impérios coloniais: o intercâmbio de matérias-primas por produtos manufaturados.
  38. Na segunda vertente da multipolarização, os Estados Unidos incorporam a seu sistema econômico, mas não incluem em seu sistema político doméstico, nem formam com eles uma nova entidade econômica e política, países da periferia subdesenvolvida e até mesmo Estados desenvolvidos como a Austrália e a Nova Zelândia. Por outro lado, à medida que a economia desses Estados fica extremamente vinculada à dos Estados Unidos vêm eles a se tornar aliados próximos da política externa americana em suas mais diversas iniciativas.
  39. No caso da vertente da China, esta se tornou um pólo catalisador do comércio e dos investimentos na Ásia, aumentando suas exportações de matérias-primas e de componentes industrializados para os demais países da região e se tornando destino e origem dos principais fluxos regionais de investimento. O principal parceiro comercial e de investimento do Japão é a China, onde se encontram 33.000 empresas produtivas japonesas.
  40. O cenário internacional terá assim como atores principais em 2022 gigantescos blocos de países que exercerão uma força centrípeta sobre Estados menores e um grupo de grandes Estados tais como a Índia e a Rússia que, por sua dimensão territorial ou demográfica, não poderão ser incorporados àqueles três grandes pólos.
  41. Cabe ao Brasil, diante desta tendência inexorável, em primeiro lugar, não se deixar incorporar a nenhum desses blocos de forma absoluta ou mesmo parcial o que afetaria sua capacidade de executar políticas de desenvolvimento com base no fortalecimento do capital e da mão-de-obra nacional; em segundo lugar, prosseguir na árdua tarefa de construção de um bloco sul-americano, região em que há muito maior homogeneidade e muito menos ressentimentos do que em outras regiões do globo, tais como a Europa ou a Ásia, para participar de forma mais eficiente do jogo político internacional de formulação de regras e para organizar um mercado maior para sua economia e a de seus vizinhos.
  42. A concentração de poder político vem se aprofundando com a gradual expansão da competência do Conselho de Segurança; a concentração de poder militar ocorre pela expansão e implementação agressiva dos acordos assimétricos de controle de armamentos, tendo como seu centro o Tratado de Não-Proliferação, e agora pelos esforços para restringir a posse de armas convencionais e de novas armas tecnológicas no contexto da guerra cibernética; a concentração de poder e de privilégios econômicos se verifica através da manutenção dos programas de proteção comercial, agrícola e industrial nos países altamente desenvolvidos enquanto que estes, simultaneamente, promovem com firmeza a abertura dos mercados dos Estados da periferia; a concentração de poder e dos privilégios tecnológicos se realiza pelos sistemas de restrição ao acesso e de controle do comércio de bens de tecnologia dual e da promoção de sistemas de proteção às patentes, cada vez mais benéficos a seus detentores.
  43. A crescente concentração de poder leva, de um lado, a tentativas permanentes dos Estados que dela se beneficiam de criarem mecanismos legais que a perpetuem e, de outro lado, fazem com que os Estados de maior potencial, vítimas dessa concentração de poder, se esforcem para desconcentrar o poder em nível mundial.
  44. Essa situação continuará a prevalecer em 2022 apesar dos esforços e das oportunidades que surgiram com a crise econômica que se iniciou em 2008 e que fez com que os países altamente desenvolvidos tivessem de abrir um espaço político maior, em especial para acomodar a China e países como a Índia e o Brasil nos seus esforços de criar uma nova “arquitetura” financeira (e econômica) mundial e de organizar novos mecanismos de governança política.
  45. Cabe ao Brasil, diante dessa perspectiva de cristalização do poder mundial e de seu extraordinário potencial, lutar com firmeza para impedir as iniciativas permanentes de consolidar privilégios e até de ampliá-los, em especial na área militar e tecnológica, e buscar a reforma dos organismos de governança mundial, tais como o Conselho de Segurança, para torná-los mais democráticos e menos instrumentos de arbítrio das Grandes Potências.
  46. A normatização das relações entre Estados soberanos, empresas e indivíduos se acelerou com a criação das Nações Unidas e de suas agências após a Segunda Guerra Mundial e vem incluindo, o que prosseguirá, a permanente tentativa de regulamentar as políticas internas dos países da periferia, quer sejam antigas ex-colônias, quer sejam ex-colônias recentes.
  47. A Grande Depressão de 1929, a fragmentação do sistema comercial e financeiro mundial, o surgimento do nazismo e a Segunda Guerra Mundial fizeram com que os Estados Unidos, com o objetivo de evitar catástrofes semelhantes futuras, preferissem abrir mão de sua ampla hegemonia do pós-guerra e criar um sistema multilateral cuja finalidade é prover a segurança coletiva, impedir uma nova guerra em escala mundial, controlar os conflitos locais e promover a cooperação econômica e o desenvolvimento. Com essa finalidade, as principais atividades dessas agências da ONU são promover a negociação de normas de conduta para os Estados em suas relações internacionais e, recentemente e cada vez mais, procurar definir parâmetros para as políticas domésticas dos Estados subdesenvolvidos, com vistas, no primeiro caso, a prevenir conflitos e, no segundo caso, a promover a adoção de políticas que correspondam a um ideal do modelo liberal-capitalista de organização da sociedade e do Estado. Esses parâmetros, que pela primeira vez surgiram como resultado das negociações da Rodada Uruguai, e que se concretizaram no conjunto de acordos que vieram a constituir a Organização Mundial do Comércio, limitam de forma significativa a capacidade dos Estados subdesenvolvidos de organizar e executar políticas de desenvolvimento necessárias à superação de suas fragilidades econômicas e sociais que fazem com que grandes parcelas de suas populações se encontrem na atual situação de extrema penúria, isto é , se encontrem abaixo da linha de pobreza.
  48. Essa normatização tem importância cada vez maior na medida em que ocorreu uma concentração de poder de toda ordem nos países altamente desenvolvidos, em paralelo a uma estagnação demográfica enquanto que, na periferia do sistema, ocorria uma explosão demográfica e uma proliferação de Estados a partir da independência dos territórios coloniais. Esta situação tornou urgente para os países altamente desenvolvidos, e que antes exerciam sua hegemonia e seu poder sobre esses novos Estados através dos sistemas coloniais, consolidar legalmente os privilégios políticos, militares, econômicos e tecnológicos por eles usufruídos e os mecanismos e instrumentos que tinham propiciado essa concentração de poder em seu favor.
  49. No período que transcorrerá até o ano de 2022 esse esforço de normatização internacional prosseguirá, inclusive na medida em que se estreitam os laços entre Estados e economias no seio dos processos de globalização e de multipolarização.
  50. Cabe ao Brasil diante dessa situação, e tendo de enfrentar as falsas maiorias constituídas por Estados mais frágeis econômica e politicamente e que vislumbram para si mesmos poucas possibilidades neste mundo cada vez mais desigual, procurar com firmeza, e sem recear um suposto “isolamento”, impedir que se negociem normas internacionais que dificultem a plena realização de seu potencial econômico e político.
  51. Em 2010, apesar de terem os Estados Unidos 23% do Produto Mundial; 8% das exportações mundiais; 11% dos investimentos externos mundiais; 27% das patentes solicitadas; 42% das despesas militares mundiais, sendo membro do Conselho de Segurança e de longe a maior potência nuclear não teriam eles, mesmo assim, capacidade para, sozinhos, transformar o mundo e o curso de suas tendências.
  52. Em 2010, tendo o Brasil 2,3% do Produto Mundial; 1,2% das exportações mundiais; 1,6% dos investimentos diretos estrangeiros mundiais; 0,3% das patentes solicitadas no mundo; 1% das despesas mundiais militares; não sendo membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas e não sendo potência nuclear, não teria o Brasil, com maior razão, capacidade, através de sua ação isolada, de radicalmente transformar a estrutura do sistema mundial nem o curso de suas tendências.
  53. Esta constatação não deve ser causa de desânimo mas, ao contrário, deve nos fortalecer em nosso propósito e determinação de transformar o mundo para torná-lo mais justo, mais próspero, mais democrático e para, no contexto daquelas tendências, articular e executar estratégias de desenvolvimento econômico e de afirmação política do Brasil.
  54. A ação brasileira em um cenário mundial, político e econômico tão complexo e difícil somente poderá ter êxito se articulada politicamente com a ação de outros Estados da periferia, sejam eles grandes Estados, como a Argentina, a África do Sul, a China e a Índia, sejam eles Estados de menor dimensão da África e da Ásia, mas certamente essa articulação deve começar pelos países da América Latina e nela pelos nossos vizinhos da América do Sul, no processo de formação de um bloco de nações sul-americanas.

Fonte:
SAE.
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