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09 julho 2019

O dia da matraca: o pior e mais pilantra dos feriados do Brasil

Feriado de 9 de julho doravante deve ser chamado de "o dia da matraca".

A "Revolução Constitucionalista de 1932" não foi revolução e muito menos a motivação maior de seus próceres era qualquer arroubo constitucionalista.

Sua maior contribuição ao país foi a invenção da matraca (foto ao lado), um aparelho que simulava o barulho de metralhadoras. Foi a maneira que o piracicabano Francisco Morato (1868-1948) inventou para disfarçar a falta de metralhadoras e munição de verdade e tentar conter o avanço das tropas getulistas.

Morato, que hoje dá nome a município e a ruas, na época, foi um dos fundadores e um dos políticos mais importantes do Partido Democrático (PD, criado em 1926) e aliado de Getúlio Vargas nas eleições de 1930.

Insatisfeitos por não terem assumido o governo do Estado de São Paulo depois da Revolução de 1930, Morato e o PD romperiam com Vargas e se aliariam a seus antigos desafetos do Partido Republicano Paulista (PRP), o partido mais importante do período que se tornou conhecido, com a ajuda do PD, como República Velha.

O livro de Francisco Quartim de Moraes, 1932: a história invertida (Editora Anita Garibaldi, 2019, 152 páginas) mostra as falsificações criadas em torno desse acontecimento infame transformado em feriado. É uma contribuição importante para a desmistificação da barulhenta tentativa de deposição de Vargas pelos paulistas quatrocentões.

Como se sabe, Vargas não era santo. Os paulistas que a ele fizeram oposição, muito menos. Em 1932, mostraram não apenas seus dentes, mas também seus tridentes e seu caldeirão de enxofre. 

A resenha Transformando a derrota em vitória, de Carlos Alberto Dória
(publicada em 9 de julho de 2019) no portal de livros Quatro Cinco Um, oferece um sumário das conclusões a esse respeito:

Transformando a derrota em vitória

Livro mostra as mentiras históricas sobre as quais a Revolução de 1932 foi construída e o caráter ideológico da identidade paulista 

A Revolução de 1930 tinha como principal aríete o Governo Provisório, cujas vicissitudes, até o Estado Novo, decorriam das tentativas de domesticar as elites regionais. Particularmente a paulista – que vinha vitoriosa contra a “política das salvações” de Hermes da Fonseca – resistiu o quanto pôde, inclusive desencadeando uma reação militar autodenominada “Revolução Constitucionalista de 1932”, cujo objetivo era derrubar Getúlio Vargas e convocar uma Constituinte, isto é, voltar a uma ordem que preservasse a autonomia dos cafeicultores nos mesmos termos da República Velha.

O pequeno livro de Francisco Quartim de Moraes questiona o “constitucionalismo” dessa elite, visto que a Constituinte já havia sido marcada por Vargas antes do levante militar. Por que então a historiografia promove a inversão de datas, como ainda hoje se lê nas referências ao levante de 1932?

Pela antiga constituição republicana, a autonomia dos estados ia a tal ponto que eles podiam contrair empréstimos diretamente com bancos estrangeiros e mesmo contratar uma missão militar, como fez São Paulo para modernizar e treinar sua Força Pública com feições de exército próprio.

Acontece que a crise mundial de 1929 havia arruinado a cafeicultura e, portanto, mais do que nunca, precisava do socorro federal para recuperar a preeminência perdida sob o Governo Provisório de Vargas. Por outro lado, o interventor federal, o tenente pernambucano João Alberto, possuía um programa que avançava num sentido diametralmente oposto às expectativas dos cafeicultores. O estabelecimento de uma legislação trabalhista; a tolerância com o Partido Comunista, fundado em 1922; o propósito de dividir as fazendas recebidas pelo Banco do Brasil em pagamento das dívidas contraídas quando do colapso dos fazendeiros; a reforma do Direito Processual – tudo isso foi assimilado como uma violação da “honra paulista”, o que provocou inicialmente a reivindicação de um interventor “civil e paulista”.

A demissão de João Alberto se deu em 1931, seguida por período de instabilidade, com mais três interventores ao longo de poucos meses até a nomeação de Pedro de Toledo, em março de 1932. Aliás, Getúlio Vargas acolheu, conciliador, várias outras exigências dos paulistas. 

Como ele mesmo escreveu três dias antes do levante: 
“Queriam a lei eleitoral – promulguei-a, exigiam interventor civil e paulista – nomeei-o. Mas, ainda não bastava. Tornava-se necessário a marcação da data das eleições – marquei-a. Continuaram, no entanto, as censuras e os ataques”.

Pensamento de direita
Em 9 de julho surge o primeiro manifesto da “revolução”, redigido por Julio de Mesquita Filho e publicado em O Estado de São Paulo. São Paulo contava com a adesão de Minas e Rio Grande do Sul para cair sobre a capital federal. O apoio, porém, não veio. À exceção de Mato Grosso, não houve adesão à causa paulista. A derrota militar seria, portanto, favas contadas.

“Então”, escreve Quartim de Moraes, “tratava-se de transformar a derrota em vitória. São Paulo tinha sido vitorioso em 1932, e sua vitória seria a realização da Constituinte de 1933-1934, a reconstitucionalização do país. A consagração desta explicação é o único fato plausível para a massiva recorrência de inversões cronológicas que servem para justificar o constitucionalismo paulista. Reconhecer que a data da Constituinte estava marcada [por Getúlio] antes do levante de 9 de julho significa reconhecer que a Constituinte não foi uma vitória do levante armado de São Paulo”, explica o autor no livro cujo fio condutor é a construção política da mentira histórica. Contudo, um dos aspectos mais notáveis e duradouros do movimento de 1932 foi dar expressão e organicidade ao pensamento de direita.

O publicista mais influente à época foi Julio de Mesquita na formulação do ideário do movimento e a sua veiculação pelo jornal O Estado de São Paulo, assim como seu genro, Armando Salles de Oliveira. Este apoiou a Revolução de 1930, mas em 1932 apoiou o levante militar e, um ano depois, foi indicado por Vargas como interventor em São Paulo. E seu ódio ao “pior dos ditadores” – coerente com a oligarquia que esqueceu sua defesa da democracia para apoiar a Lei de Segurança Nacional em 1935 –l converteu-se em apoio na repressão ao comunismo. Assim, “em um período de cinco anos, o jornal e seus ideólogos, conforme seus interesses, mudaram o discurso sobre Getúlio Vargas diametralmente e repetidas vezes”, diz Quartim de Moraes.

Segregação
Sob a conveniência política veio à luz do dia a expressão ampla dos preconceitos da elite do estado. Em primeiro lugar, explicou-se a derrota como fruto de “traições” no front externo e interno. Criou-se o mito do “bom paulista” e do “mau paulista”, sendo esses últimos de várias castas, e foi notável o racismo expresso na própria organização das operações militares. Havia um batalhão só de negros, por exemplo. Segregação retratada na obra que Alfredo Ellis Jr. escreveria – Primeiros troncos paulistas e o cruzamento euro-americano (1936) – mostrando que a população negra não teria contribuído para a formação da “nação paulista”.

Também os nordestinos passavam a ser estigmatizados em São Paulo, inclusive para isolar João Alberto, nordestino pernambucano, ao se exigir um interventor paulista – campanha na qual atuou a Liga pela Constituição e pela Ordem, de Paulistas de Nascimento.

A partir de 1932 se intensificara a migração nordestina para São Paulo. Especialmente graças à seca daquele mesmo ano, seguida pela chamada “seca de João Miguel”, quando o comandante militar baiano arquitetou o plano de esvaziar a caatinga para isolar e vencer os cangaceiros. Só no município de Simão Dias, 12 mil pessoas foram expulsas de suas casas a coronhadas do comando militar da operação. São Paulo fez-se o destino daqueles que buscavam recomeçar a vida, mas esbarrando na ideologia do “paulista” como superior aos demais brasileiros.

Já mais tarde, Cassiano Ricardo, em Marcha para oeste (1940) foi quem mais longe levou o culto ao mito paulista dos bandeirantes (“raça de gigantes”, dizia parodiando Auguste de Saint-Hilaire de um século antes) como fundadores da nação. E 1932 foi sempre visto como a expressão da consciência moral unificada dos “descendentes dos bandeirantes”. Em outras palavras, 1932 serviu também para transformar facinorosos bandeirantes em “heróis nacionais”.

Mito dos “heróis nacionais”
Do mesmo modo, Paulo Duarte condena o “Palmares pelo avesso” que seria submeter São Paulo dos descendentes dos antigos bandeirantes, brancos e revoltosos. “Será puro lirismo sentimental se chamarem irmãos [...] um dólico-moreno de Minas, ou um platycephalomongoilado do Sergipe, ou do Ceará ou um negro da Bahia”, genericamente tidos como “cabeça chata”.

O ideal separatista parecia a solução para todas as contradições da nação – das políticas e momentâneas às estruturais. Como escreveu Monteiro Lobato em 1932,  “Hegemonia ou separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política que lhe dá a hegemonia de fato que conquistou pelo seu trabalho no campo econômico e cultural, ou separa-se [...] Ou São Paulo desarma a União e arma-se a si próprio, de modo a dirigir doravante a política nacional a seu talento e em seu proveito, ou separa-se”.

Este “espírito de liga Lombarda” deitou cidadania na expressão de “paulistanidade” como superioridade racial, moral, econômica e política de São Paulo diante dos demais estados. A ideia de “locomotiva do Brasil” e o dístico “Non ducor. Duco” de Guilherme de Almeida são expressões que encarnam essa convicção conservadora, assim como a historiografia bandeirante do período, e mesmo certa sociologia antipopulista posterior, por horror a um “queremismo” que já começava a se manifestar.

Quando da comemoração do 4º Centenário de São Paulo (1954) esse espírito foi reavivado nas letras e arquitetonicamente em torno do Parque do Ibirapuera. O seu Obelisco foi construído em 1947 em homenagem aos “heróis de 1932”, segundo projeto do arquiteto fascista Galileo Ugo Emendabili, e inaugurado em 1955, próximo ao Monumento das Bandeiras, de Victor Brecheret, reforçando a mitologia da “paulistanidade”. De modo irônico, o parque fora construído sobre antigo pântano onde se comemora, ano a ano, a principal data cívica dos “bons paulistas”.


É ao explicitar o caráter ideológico do pântano sobre o qual repousa a “paulistanidade” que o trabalho de Quartim de Moraes se torna leitura obrigatória para todos que, “bons” ou “maus”, são paulistas cercados de brasileiros por todos os lados.












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