Resenha do livro "Daquilo que eu sei", de Fernando Lyra, que foi um dos articuladores da candidatura de Tancredo Neves à Presidência, em 1984, e se tornou ministro da Justiça na presidência Sarney.
Aluízio Falcão *
Logo no título, que se reproduz acima, Fernando Lyra demarcou os limites do seu relato. Prometeu implicitamente, e cumpriu, restringir-se ao território da política. Evitou desenvolver, como é habitual em livros de memórias, um enredo completo das experiências vividas. Fugiu às tentações da auto-referência, embora os que o conhecem mais de perto saibam que teria muito a dizer na abordagem de outras particularidades. A contração gramatical (Daquilo) reduziu mais ainda o âmbito narrativo. E o verbo ganhou um sentido modesto de conhecer, anulando a conotação geralmente explorada por quem se imagina um sabe-tudo.
Destacado ator da vida pública brasileira em um de seus momentos mais cruciais, Fernando apresenta um depoimento focado no papel que lhe coube. Quando precisou expor ideias, teve a sabedoria de reproduzir entrevistas dadas no calor da hora, sem retoques de conveniência. A parte memorial, escrita duas décadas após a transição, também possui o mérito da rigorosa fidelidade aos acontecimentos.
Revelador e sem falsas habilidades, fluente como as boas conversas, o texto cativa o leitor do começo ao fim. Mostra-nos um homem sem ódios, mas rigoroso em seus juízos. Político íntegro, que não faz da integridade, como está em moda, uma estratégia na promoção de imagem. Articulador nato, mestre na agregação, e que sabe guardar os arroubos para a tribuna, manejando sempre, no convívio, as armas da persuasão. Neste ponto, um Tancredo com sotaque de Pernambuco.
Fernando Lyra oferece, perante a história, uma relevante comparação entre o presidente Tancredo Neves e o doutor Ulysses Guimarães. Próximo de ambos na resistência à ditadura militar e depois nos eventos da transição democrática, o ex-ministro não usa rodeios, nem metáforas. O seu julgamento é de uma precisão cirúrgica. Com todo respeito ao liberal paulista e reconhecendo seus méritos no processo de abertura, Lyra escreve:
“Ulysses era um radical por fora e um conservador por dentro. Eu preferia alguém mais uniforme e coerente, que também reunisse grande competência política. Foi por isso que escolhi Tancredo Neves como meu candidato a presidente da República. Ao contrário do doutor Ulysses, ele era todo moderado, interna e externamente, mas de uma coerência absoluta.”
Não faltam as tiradas de humor que sempre marcam a conversação do memorialista. Ele rememora circunstâncias em que proferiu a célebre frase “Sarney é a vanguarda do atraso.” Queria, então, significar que o presidente, entre os seus pares do PFL, era o mais progressista. Depois, não perde a piada e imagina o governo do seu amigo Fernando Henrique Cardoso como “o atraso da vanguarda”.
Narrando o passado, Fernando Lyra não recorre, em nenhum momento, à perigosa retórica da nostalgia – o que também é um traço de sua expressão oral, constantemente em sintonia com o presente e o futuro. Não é por outro motivo que, vez por outra, como aconteceu na última eleição para governador, ele se engaja em campanhas pela afirmação de idéias que lhe parecem mais avançadas.
Temos nas 300 páginas deste livro uma aula de história. Dada por quem a viveu intensamente e escrita em linguagem direta, leve, sem teorizações, com a dosagem certa de blague, documento e emoção. A nossa historiografia muito ganhará se outros relatos forem publicados com igual conteúdo. A memória nacional, sabidamente precária, foi enriquecida com esse testemunho de um protagonista que honrou a vida cívica do País em momentos decisivos. Momentos que determinaram a completa exaustão do arbítrio e a remoção do que Lyra chamou apropriadamente de “entulho autoritário”.
Como na bela canção de Ivan Lins e Vitor Martins, moços que hoje colhem os frutos da liberdade têm com ele e outros combatentes daquele tempo nublado uma dívida perene de reconhecimento. Poderiam até abordá-lo e dizer simplesmente: “Fernando, você foi o cara.”
* Jornalista, Artigo publicado no Jornaldo Commercio, de Pernambuco, 10 de maio de 2009.
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Aluízio Falcão *
Logo no título, que se reproduz acima, Fernando Lyra demarcou os limites do seu relato. Prometeu implicitamente, e cumpriu, restringir-se ao território da política. Evitou desenvolver, como é habitual em livros de memórias, um enredo completo das experiências vividas. Fugiu às tentações da auto-referência, embora os que o conhecem mais de perto saibam que teria muito a dizer na abordagem de outras particularidades. A contração gramatical (Daquilo) reduziu mais ainda o âmbito narrativo. E o verbo ganhou um sentido modesto de conhecer, anulando a conotação geralmente explorada por quem se imagina um sabe-tudo.
Destacado ator da vida pública brasileira em um de seus momentos mais cruciais, Fernando apresenta um depoimento focado no papel que lhe coube. Quando precisou expor ideias, teve a sabedoria de reproduzir entrevistas dadas no calor da hora, sem retoques de conveniência. A parte memorial, escrita duas décadas após a transição, também possui o mérito da rigorosa fidelidade aos acontecimentos.
Revelador e sem falsas habilidades, fluente como as boas conversas, o texto cativa o leitor do começo ao fim. Mostra-nos um homem sem ódios, mas rigoroso em seus juízos. Político íntegro, que não faz da integridade, como está em moda, uma estratégia na promoção de imagem. Articulador nato, mestre na agregação, e que sabe guardar os arroubos para a tribuna, manejando sempre, no convívio, as armas da persuasão. Neste ponto, um Tancredo com sotaque de Pernambuco.
Fernando Lyra oferece, perante a história, uma relevante comparação entre o presidente Tancredo Neves e o doutor Ulysses Guimarães. Próximo de ambos na resistência à ditadura militar e depois nos eventos da transição democrática, o ex-ministro não usa rodeios, nem metáforas. O seu julgamento é de uma precisão cirúrgica. Com todo respeito ao liberal paulista e reconhecendo seus méritos no processo de abertura, Lyra escreve:
“Ulysses era um radical por fora e um conservador por dentro. Eu preferia alguém mais uniforme e coerente, que também reunisse grande competência política. Foi por isso que escolhi Tancredo Neves como meu candidato a presidente da República. Ao contrário do doutor Ulysses, ele era todo moderado, interna e externamente, mas de uma coerência absoluta.”
Não faltam as tiradas de humor que sempre marcam a conversação do memorialista. Ele rememora circunstâncias em que proferiu a célebre frase “Sarney é a vanguarda do atraso.” Queria, então, significar que o presidente, entre os seus pares do PFL, era o mais progressista. Depois, não perde a piada e imagina o governo do seu amigo Fernando Henrique Cardoso como “o atraso da vanguarda”.
Narrando o passado, Fernando Lyra não recorre, em nenhum momento, à perigosa retórica da nostalgia – o que também é um traço de sua expressão oral, constantemente em sintonia com o presente e o futuro. Não é por outro motivo que, vez por outra, como aconteceu na última eleição para governador, ele se engaja em campanhas pela afirmação de idéias que lhe parecem mais avançadas.
Temos nas 300 páginas deste livro uma aula de história. Dada por quem a viveu intensamente e escrita em linguagem direta, leve, sem teorizações, com a dosagem certa de blague, documento e emoção. A nossa historiografia muito ganhará se outros relatos forem publicados com igual conteúdo. A memória nacional, sabidamente precária, foi enriquecida com esse testemunho de um protagonista que honrou a vida cívica do País em momentos decisivos. Momentos que determinaram a completa exaustão do arbítrio e a remoção do que Lyra chamou apropriadamente de “entulho autoritário”.
Como na bela canção de Ivan Lins e Vitor Martins, moços que hoje colhem os frutos da liberdade têm com ele e outros combatentes daquele tempo nublado uma dívida perene de reconhecimento. Poderiam até abordá-lo e dizer simplesmente: “Fernando, você foi o cara.”
* Jornalista, Artigo publicado no Jornaldo Commercio, de Pernambuco, 10 de maio de 2009.
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