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03 fevereiro 2012

Sarney versus Mujica: duas visões sobre o Mercosul

Na visão do presidente do Uruguai, Pepe Mujica, o Mercosul estancou. Para Mujica, no entanto, países do bloco não podem se descolar do Brasil.
Ex-presidente José Sarney diz que o Mercosul é "utopia sem retorno". Por sua vez, critica sutilmente o caminho enveredado sob a influência dos então presidentes Collor e Menem, que teriam restringido a ideia ao estágio de união aduaneira, sem avançar no plano original de integração física, comercial, cultural e política.



Mercosul estancou e por isso não atrai mais interessados
Entrevista José Mujica*

Presidente uruguaio diz que bloco não tem a "fluidez de uma relação natural" e funciona movido a telefonemas para gestão de crises.

O presidente uruguaio, José "Pepe" Mujica, não tem meias palavras. Para ele, o Mercosul "estancou", parou de crescer porque outros países não reconhecem como um bom negócio entrar no bloco. "Se ninguém bate à porta para entrar, é o melhor sinal de que estamos estancados", disse à Folha, em entrevista em São Paulo, no último dia 17.

Para ele, é importante que o Uruguai acompanhe o crescimento da "grande potência emergente" que é o Brasil, sendo "complementar" ao país. Mas também aproveitando o alto poder aquisitivo de uma estrita parcela dos consumidores brasileiros.

Folha - Em entrevista recente, o sr. disse que o Uruguai tinha que "pegar carona" com o Brasil. Como isso se daria?

José Mujica - O Brasil é uma grande potência emergente e nós temos que procurar, em todo o possível, sermos complementares e úteis nesse crescimento do Brasil. Temos que acomodar nossa infraestrutura, comunicação, energia e indústrias para que sejam complementares. Temos que nos apoiar na diversificação mundial, nos distintos cenários que o Brasil tem. "Pegar carona" não é andar de graça, mas, sim, ser útil.

O comércio entre os dois países foi de US$ 4 bilhões em 2011. Mas apenas as exportações brasileiras cresceram desde 2010. Como o Uruguai pretende aumentar as suas exportações?

Tem que ter um trabalho deliberado, porque não se fará de forma espontânea. Se deixamos a economia levar-se sozinha, só vamos oferecer matéria-prima para o Brasil.

O Uruguai produz laticínios muito bons, por exemplo. O Brasil está melhorando a sua produção. Então o Uruguai tem que produzir laticínios de qualidade ainda melhor para o mercado caro do Brasil.

Como o sr. avalia o desempenho do Mercosul, como bloco?

O Mercosul, em questão de intercâmbio, está muito bem. Apesar das dificuldades, cresceu, mas não tem garantia institucional. Funciona meio que movido a telefonemas, à gestão das chancelarias quando se tem uma dificuldade aqui ou lá.

Deste ponto de vista, não tem a fluidez de uma relação natural. Não cresce porque, para crescer, tinha que ser muito tangível a visão lá fora de que é um bom negócio entrar no Mercosul. Se ninguém bate à porta para entrar [no bloco], esse é o melhor sinal de que estamos estancados.

O Uruguai está julgando crimes da ditadura e acabou com a anistia para os crimes contra a humanidade. Esse pode ser um exemplo para o Brasil?

Eu não me aventuro tanto, porque o Brasil é um continente, e não é igual [ao Uruguai]. Nós não tivemos outra alternativa a não ser rever esse processo, que foi muito duro para a história do Uruguai.

Mas não ache que é simples ou fácil. Enquanto um quer julgar qual é o princípio e o fim, outro quer superar o que passou. Todavia, é uma medida muita forte. Há certas memórias que perduram no tempo. E o pior é correr o risco de formar uma nova geração com as paixões e as inclinações da velha geração.

O sr. defende que repressores da ditadura com mais de 70 anos sejam libertados. Esta posição não é contraditória com a decisão de julgar e punir os crimes do período?

Essa é uma posição filosófica, não sobre a ditadura. Não sou partidário de ter gente de 80, 90 anos presa. Acho que, humanamente, não é correto. Quando ficamos mais velhos, estamos cada vez mais perto da morte, e, durante esse fenômeno natural, é melhor que se esteja ao lado da família. Prefiro a prisão domiciliar, se assim quiserem. Mas esta é a minha visão, não a da sociedade uruguaia. É como o aborto, é um problema de consciência.

E qual a sua posição sobre a legalização do aborto, já aprovada pela Câmara?

Sou partidário de legalizá-lo. Acho que temos de apoiar a mulher nesse momento, e, com esse apoio, em muitos casos se salva uma vida, porque a mulher retrocede. Mas, se deixamos que seja um ato clandestino, elas continuam fazendo aborto e ninguém as apoia.

O sr. veio ao Brasil apenas para visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem nunca escondeu a admiração. O sr. segue seu exemplo para governar?

O governo Lula sempre foi um modelo, ajudou a tirar muita gente da miséria. Porém, entre a esquerda e a direita, não pode haver muita conciliação, em um sentido duradouro.

É como uma permanente disputa, mas essa disputa não deve se transformar em uma confrontação que fossiliza a sociedade. Essa é a principal experiência que nos deixou o governo Lula.

* Entrevista concedida à repórter Isabel Fleck, da Folha de S. Paulo, 29/01/2012




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Mercosul, utopia sem retorno 
José Sarney*

O Mercosul teve como objetivo criar um espaço estratégico macroeconômico no Cone Sul nos moldes europeus, um Mercado Comum, com integração física, comercial, cultural e política. Projeto grandioso que no futuro se estenderia a toda América do Sul, tendo como resultado final a criação de uma Comunidade de Nações, marco que chegou a ser textualizado no artigo 4º, Parágrafo Único, de nossa Constituição de 88, que inclui entre os princípios da República "a formação de uma comunidade latino-americana de nações".

Fazia parte desse modelo ser implementado em integração por setores, para não haver retrocessos, levando em conta nossas assimetrias.

Como política internacional, estávamos encerrando nossas divergências históricas com a Argentina, baseadas na tese idiota e falsa do século 19 de que o país que dominasse o Prata dominaria a América. Essa relação de confrontação permeou nossas relações. Os dois países chegaram a tal nível de desconfiança mútua que saíram para uma competição de quem primeiro produziria uma bomba atômica, com todas as implicações de trazer a corrida nuclear para nosso continente.

A ascensão em 1989 de Menem, na Argentina, e em 1990 de Collor, no Brasil, fez com que o Tratado de Assunção mudasse os rumos para criar uma União Aduaneira, com tarifa zero. Assim os aspectos da integração política, social, cultural, física e estratégica foram esquecidos. Também o Tratado de Assunção passou a ter grandes problemas.

Após vinte e poucos anos é impossível reconstruir o clima político e o nível das relações comerciais então existentes. Hoje, com a presença da China, de novas estruturas como os Brics, a Unasul, da globalização financeira, a motivação do Mercosul fica mais distante, sobretudo porque não se realizou em plenitude.

Mas não podemos deixar de ressaltar que foi capaz de atravessar todas as graves crises econômicas das últimas duas décadas, aumentando o intercâmbio comercial, hoje de 45 bilhões de dólares, embora sua participação na economia brasileira, que chegou a 17% do nosso comércio exterior, tenha se reduzido para 9% da totalidade das trocas.

As conquistas no intercâmbio cultural, político, econômico e turístico foram grandes e em nossas relações foram eliminados todos os medos e divergências. Basta um aspecto para dar a dimensão histórica do que fizemos de maneira exemplar, o uso pacífico da energia nuclear.

Não sei se hoje, com as mudanças do mundo, construiríamos um tratado como o Mercosul. Ele só foi possível graças à visão de estadista de Raúl Alfonsín, que construiu uma parceria corajosa com o Brasil. Os governos peronistas que o sucederam jamais assimilaram esta política, fiéis a uma visão protecionista ultrapassada, com licenças prévias de exportação e restrições de toda ordem, contrárias ao espírito do próprio Mercosul. Se este sobreviveu e sobrevive deve-se à fidelidade do Brasil à ideia mais ampla e grandiosa do que ele representa para o futuro do continente sul-americano.

O grande problema atual é retirá-lo da inércia, sair das questiúnculas comerciais para pensar no que ele representou, suas conquistas, suas potencialidades de criar uma identidade coletiva latino-americana. Avaliar os erros e acertos e sobretudo não deixar morrer a utopia da integração.

Sanguinetti, esse grande estadista que tanta importância teve na criação do Mercosul, colocando o Uruguai como algodão entre cristais nas divergências entre o Brasil e Argentina, disse que o Mercosul foi o fato mais importante que aconteceu depois de nossas Independências.

Resumindo, podemos afirmar que, tendo atravessado e atravessando muitos recuos e poucos avanços, o Mercosul é um projeto que cumpriu sua inspiração inicial de acabar com todas as separações que nos impediam de trabalhar em conjunto, aproximando nossos povos, promovendo o intercâmbio e acertando políticas conjuntas que hoje podem ser vistas como latino-americanas.

É um caminho sem retorno. Mas não pode hibernar na aceitação do pessimismo.

* JOSÉ SARNEY (PMDB--AP) é presidente do Senado Federal. Ex-presidente da República, no seu governo foram lançadas as bases para a criação do Mercosul. Artigo publicado em O Globo, 29/01/2012.





 
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