Artigo de Fareed Zakaria fala sobre o risco que é um pesadelo de qualquer democracia: a paralisia decisória, ou seja, a situação na qual os impasses na falta de acordo entre Executivo e Legislativo impedem que sejam tomadas decisões para problemas importantes.
Qual é a saída para a política americana?
Fareed Zakaria
Fonte: Revista Época, 23/07/2011
No impasse sobre a crise da dívida dos Estados Unidos, é fácil acusar o movimento da extrema direita Tea Party. Até comentaristas conservadores dizem que a ideologia inflexível do grupo está no coração do problema. Surgiram, porém, muitas vezes, fortes correntes ideológicas na política americana, representadas por políticos como William Jennings Bryan, Barry Goldwater e George McGovern. Mesmo entre uma eleição e outra, as pessoas ainda encontravam formas de transigir e governar.
O que mudou de forma constante ao longo das últimas três ou quatro décadas não foi tanto a intensidade ideológica (embora ela tenha crescido), mas a estrutura da política, que faz dela muito mais devedora de interesses estreitos e específicos do que de interesses nacionais mais amplos.
Não existiu uma era de ouro em Washington, em que as pessoas tinham interesses mais elevados do que hoje. Há 40 anos, porém, as regras e a estrutura organizacional da política tornavam mais fácil os dois partidos trabalharem juntos. De lá para cá, uma série de mudanças levou a uma condução mais estreita da política americana. A reconfiguração dos distritos eleitorais criou cadeiras seguras para cada partido, de forma que, para a maioria dos membros da Câmara, a única preocupação é um desafio da direita (para os republicanos) e da esquerda (para os democratas).
As primárias dos partidos foram tomadas por grupos de ativistas que empurram até senadores com muitos votos para posições extremas. Em Utah, 3.500 conservadores conseguiram afastar o respeitado senador republicano Robert Bennett das urnas. Senadores como Orrin Hatch e John McCain, também republicanos, se deslocaram muito mais para a direita, na esperança de evitar investidas semelhantes.
Mudanças nas regras do Congresso também tornaram muito mais difícil aprovar uma legislação abrangente e conciliatória. Na esteira do escândalo do Watergate, foram estabelecidas regras que exigiam reuniões abertas dos comitês e registro dos votos. O propósito era tornar o Congresso mais aberto e suscetível, e ele se tornou – só que para lobistas e interesses específicos.
O impasse sobre o teto da dívida é o reflexo de um Congresso marcado por malevolência e paralisia
A polarização entre democratas e republicanos também é alimentada pela mídia, que acaba sendo usada por quem está interessado nisso. No fim do ano passado, o influente deputado republicano Darrell Issa, da Califórnia, deu uma entrevista ao Wall Street Journal na qual insinuou que poderia promover a agenda conservadora por meio de um eventual acordo com o governo. Isso provocou um discurso inflamado do famoso radialista ultraconservador Rush Limbaugh, o que gerou uma torrente de e-mails e ligações telefônicas iradas para o gabinete de Issa. O deputado rapidamente pediu desculpas publicamente a Limbaugh e prometeu fazer somente oposição ao presidente Barack Obama. Multiplique esse exemplo por 1.000 e você terá a dinâmica rotineira do Congresso.
O fato de a política americana ser resultado de alterações estruturais significa que ela pode ser mudada. Mickey Edwards, republicano e ex-membro da Câmara por Oklahoma, escreveu um ensaio inteligentíssimo na revista The Atlantic, sugerindo uma série de reformas que poderiam fazer diferença. Algumas delas são em larga escala, como criar primárias realmente abertas e entregar o poder de reestruturar os distritos eleitorais para comissões independentes. Outras são mudanças aparentemente pequenas, mas cruciais, nos procedimentos e práticas do Congresso, como preencher vagas em comitês por sorteio e colocar profissionais nessas comissões, em vez de militantes.
Alguns cientistas políticos desejavam havia tempo que os partidos americanos se tornassem ideologicamente mais puros e coerentes, como os europeus. O desejo deles se realizou, e o resultado é previsível. Os EUA não têm um sistema parlamentarista em que um partido assume o controle de todas as alavancas do poder, põe sua agenda em ação e depois se volta para os eleitores. O poder é compartilhado entre um conjunto de instituições com autoridades que se sobrepõem. Os partidos precisam cooperar para que qualquer coisa seja feita. Os americanos não estão condenados a ter um sistema político cujas principais características são malevolência e paralisia.
Siga o blog e receba postagens atualizadas. Clique na opção "seguir", ao lado.
Qual é a saída para a política americana?
Fareed Zakaria
Fonte: Revista Época, 23/07/2011
No impasse sobre a crise da dívida dos Estados Unidos, é fácil acusar o movimento da extrema direita Tea Party. Até comentaristas conservadores dizem que a ideologia inflexível do grupo está no coração do problema. Surgiram, porém, muitas vezes, fortes correntes ideológicas na política americana, representadas por políticos como William Jennings Bryan, Barry Goldwater e George McGovern. Mesmo entre uma eleição e outra, as pessoas ainda encontravam formas de transigir e governar.
O que mudou de forma constante ao longo das últimas três ou quatro décadas não foi tanto a intensidade ideológica (embora ela tenha crescido), mas a estrutura da política, que faz dela muito mais devedora de interesses estreitos e específicos do que de interesses nacionais mais amplos.
Não existiu uma era de ouro em Washington, em que as pessoas tinham interesses mais elevados do que hoje. Há 40 anos, porém, as regras e a estrutura organizacional da política tornavam mais fácil os dois partidos trabalharem juntos. De lá para cá, uma série de mudanças levou a uma condução mais estreita da política americana. A reconfiguração dos distritos eleitorais criou cadeiras seguras para cada partido, de forma que, para a maioria dos membros da Câmara, a única preocupação é um desafio da direita (para os republicanos) e da esquerda (para os democratas).
As primárias dos partidos foram tomadas por grupos de ativistas que empurram até senadores com muitos votos para posições extremas. Em Utah, 3.500 conservadores conseguiram afastar o respeitado senador republicano Robert Bennett das urnas. Senadores como Orrin Hatch e John McCain, também republicanos, se deslocaram muito mais para a direita, na esperança de evitar investidas semelhantes.
Mudanças nas regras do Congresso também tornaram muito mais difícil aprovar uma legislação abrangente e conciliatória. Na esteira do escândalo do Watergate, foram estabelecidas regras que exigiam reuniões abertas dos comitês e registro dos votos. O propósito era tornar o Congresso mais aberto e suscetível, e ele se tornou – só que para lobistas e interesses específicos.
O impasse sobre o teto da dívida é o reflexo de um Congresso marcado por malevolência e paralisia
A polarização entre democratas e republicanos também é alimentada pela mídia, que acaba sendo usada por quem está interessado nisso. No fim do ano passado, o influente deputado republicano Darrell Issa, da Califórnia, deu uma entrevista ao Wall Street Journal na qual insinuou que poderia promover a agenda conservadora por meio de um eventual acordo com o governo. Isso provocou um discurso inflamado do famoso radialista ultraconservador Rush Limbaugh, o que gerou uma torrente de e-mails e ligações telefônicas iradas para o gabinete de Issa. O deputado rapidamente pediu desculpas publicamente a Limbaugh e prometeu fazer somente oposição ao presidente Barack Obama. Multiplique esse exemplo por 1.000 e você terá a dinâmica rotineira do Congresso.
O fato de a política americana ser resultado de alterações estruturais significa que ela pode ser mudada. Mickey Edwards, republicano e ex-membro da Câmara por Oklahoma, escreveu um ensaio inteligentíssimo na revista The Atlantic, sugerindo uma série de reformas que poderiam fazer diferença. Algumas delas são em larga escala, como criar primárias realmente abertas e entregar o poder de reestruturar os distritos eleitorais para comissões independentes. Outras são mudanças aparentemente pequenas, mas cruciais, nos procedimentos e práticas do Congresso, como preencher vagas em comitês por sorteio e colocar profissionais nessas comissões, em vez de militantes.
Alguns cientistas políticos desejavam havia tempo que os partidos americanos se tornassem ideologicamente mais puros e coerentes, como os europeus. O desejo deles se realizou, e o resultado é previsível. Os EUA não têm um sistema parlamentarista em que um partido assume o controle de todas as alavancas do poder, põe sua agenda em ação e depois se volta para os eleitores. O poder é compartilhado entre um conjunto de instituições com autoridades que se sobrepõem. Os partidos precisam cooperar para que qualquer coisa seja feita. Os americanos não estão condenados a ter um sistema político cujas principais características são malevolência e paralisia.
Siga o blog e receba postagens atualizadas. Clique na opção "seguir", ao lado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por comentar.